O que mais nos choca na morte de David Robert Jones é percebermos que, afinal, ele era mortal. Pensávamo-lo como alien, Ziggy, Major Tom ou White Duke, como poeira estrelar ou vampiro com Deneuve. Foi maldito em Labirinto e encarnou Pilatos, Warhol e Tesla, entre muitos outros papéis.É com Sakamoto que penso Bowie, relembrando o clássico de Oshima “Merry Xmas, Mr. Lawrence”, película que traduz a sedução proibida entre dois jovens oficiais separados pela linha que ainda hoje divide o mundo. O que levou o realizador nipónico a escolher duas figuras já conhecidas do mundo pop, não sei, mas mostrou-nos o melhor Bowie da sétima das artes. Porque o relembro com Sakamoto? Porque se reencontraram na doença.
Confesso que nunca fui fã incondicional do “camaleão”, pois seguia mais fervorosamente as latitudes do citado Sakamoto e de quem canta o tema título desse mesmo filme, outro David, também britânico, mas de sobrenome Sylvian. Contudo, todas estas arquitecturas sonoras fazem parte do que sou e do que me fez ser assim e Bowie é também, e por isso, incontornável na minha vida. Nas nossas vidas.
Este meu afastado olhar permite-me escolher a música preferida, apontar o álbum que me mais me preenche, a década de que menos gostei. É até fácil olhar um Deus e apontar-lhe os defeitos, porque e afinal, ele pura e simplesmente o permite. A constante busca pela diferença transformou até actos falhados em hinos imortais. Mas é a perseverança a sua mais valia, a chama que alimentou a veia criativa durante décadas e que nunca o deixou descansar. É também por isso que louvamos a figura omnipresente que soube envelhecer e transformar-se aos modos do tempo.
Não sei se os mais novos conhecem a carreira de David Bowie. Mas sei que lhes será muito difícil entender a importância de um personagem que foi inovador num tempo tão radicalmente diferente do de agora, em que qualquer coisa se torna global através de um simples click. As barreiras que ajudou a ultrapassar, as amizades que demonstrou em parcerias, os ventos que mudavam a sua própria sexualidade, as atitudes e escolhas estéticas, são elas próprias um hino à iconografia do final do século passado, em que Bowie é figura ímpar.
Sempre manipulador, escondeu a sua maleita preparando uma despedida extraordinária com, talvez, a sua melhor obra, transfigurada de presente natalício para os fãs de sempre. Uma missa negra, profunda, desrespeitadora das convenções. Terá sido o seu próprio “Merry Xmas, Mr. Bowie”?
Não perdemos apenas um camaleão, mas um dos últimos gentleman que se transformou numa eterna Black Star!
[…] A última cor do camaleão é negra como uma Black Star […]