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Domingo, Novembro 3, 2024

A utopia do “Trickle-Down”

Arnaldo Xarim
Arnaldo Xarim
Economista

Em conversas informais ou no mais responsável dos meios de comunicação, surgem regularmente referências directas ou indirectas ao chamado “trickle down economics”. No apoio ou na crítica ao modelo de política económica seguido (ou imposto pelos “negociadores” dos programas de apoio financeiro do FMI, da UE e do BCE) na Zona Euro, está sempre implícita a discussão daquela teoria que na mais simples das suas versões se traduz na ideia que as reduções de impostos e outros benefícios fiscais de que beneficiem as grandes empresas e as famílias mais ricas, acabarão por se converter também em benefícios para os segmentos menos favorecidos do conjunto da população.

Embora a sua entrada no léxico corrente seja recente, a origem do conceito é bastante antiga e por isso mesmo são estatisticamente observáveis os efeitos práticos da sua aplicação, mesmo quando a simples observação empírica bastaria para o refutar. Sem truques nem malabarismos desnecessários basta recordar que o período áureo dos seus defensores coincidiu com a eleição de Ronald Reagan para presidência norte-americana e com a aplicação da chamada “Reaganomics” – designação pela qual ficou conhecida a política económica adoptada pelo presidente Reagan, durante a década de 80, assente nos quatro pilares da redução dos gastos públicos, da redução dos impostos sobre a renda e os ganhos de capital, da desregulação da economia e do controlo da oferta de moeda para reduzir a inflação – , ou seja, o predomínio das teorias económicas orientadas para o lado da oferta e directamente influenciadas pela teoria monetarista de Milton Friedman.

Daqui a transformar esta corrente de pensamento na espinha dorsal dos tecnocratas do FMI e do Banco Mundial e a “exportá-la” por esse mundo fora, foi apenas um pequeno passo. Aproveitando os pedidos de auxílio financeiro dos Estados em maiores dificuldades económicas, transformando aqueles princípios em condições obrigatórias, foram os Estados convertidos em presas fáceis de interesses alheios, que rapidamente os desfiguraram em estruturas economicamente dependentes do fornecimento de bens e serviços básicos.

Foi assim que assistimos durante a última geração a uma expansão forçada da globalização (com o que este conceito apresenta de mais prejudicial em termos de aculturação e de destruição de tecidos produtivos autóctones) e á difusão da ideia das enormes vantagens que adviriam para todos duma política de reduções fiscais para uma minoria que não podia deixar de gerar benefícios colectivos. Baixaram-se os impostos sobre os lucros (em especial os das grandes empresas de capitais transnacionais), sobre os rendimentos de capital (gerados nos mercados globais de acções e nos recém inventados “offshores” financeiros), liberalizaram-se mercados (eliminando barreiras alfandegárias e normas protectoras de territórios e trabalhadores) para chegarmos à situação em que os Estados, privados de receitas suficientes se viram empurrados para o recurso ao endividamento como única via para o financiamento das suas políticas.

Independentemente da qualidade destas políticas, o resultado hoje visível foi o empobrecimento geral das famílias e dos Estados (mais gravoso ainda quando o endividamento foi canalisado para investimentos de duvidosa ou nula rentabilidade económica e social), e o aproveitamento que do mesmo está a ser feito.

A lista de prejudicados já vai longa e nela se incluem Estados da América Latina, empurrados nos anos 80 e 90 do século passado pela situação de défices crónicos nas suas balanças comerciais, países do Sudoeste Asiático, empobrecidos pelo sistema de comércio mundial e pela fragilidade das suas divisas, a Rússia, economicamente devastada na sequência da desagregação da União Soviética, e por fim os países periféricos da Zona Euro.

Uma versão actualizada do trickle down surgiu numa UE onde impera a ideia de que uma austeridade expansionista – traduzida nas palavras dum dos seus campeões, Passos Coelho, como um processo de empobrecimento que nos conduzirá à riqueza – constituirá a panaceia salvadora e remissora de todos os nossos males. Asseguram-nos que um aumento selectivo de impostos (indirectos e directos sobre os assalariados), uma redução de salários (em termos efectivos e/ou através do aumento dos horários de trabalho) e de prestações sociais, tudo factores que reduzirão o rendimento disponível das famílias e a receita directa do Estado, constitui a melhor solução mas não explicam o seu evidente fracasso – bem expresso nas dificuldades que atravessa a Europa do Sul e na manutenção dos elevados níveis da sua dívida pública – nem sequer as conclusões do relatório sobre políticas fiscais apresentado pelo FMI em 2012.

Neste documento (Fiscal Monitor Update de Janeiro de 2012) concluía-se que afinal a grande preocupação dos “mercados” não é tanto a consolidação orçamental a médio prazo mas, principalmente o crescimento económico de curto prazo; resultado que valida apenas a mais lógica e elementar das preocupações de qualquer investidor: assegurar o retorno do capital investido e dos juros.

O fracasso do trickle-down confirma-se com a revelação de que os despojos do crescimento económico se têm acumulado progressivamente em direcção ao segmento dos 10% mais ricos, enquanto os restantes 90%, que até ao início dos anos 1950 acumularam 80% dos ganhos do crescimento económico, estão agora praticamente estagnados.

Do mesmo modo a redução de impostos para os mais ricos, não está a escorrer até aos mais desfavorecidos e, pior, nem sequer está a fomentar um maior crescimento económico, como o comprovam as fracas taxas de crescimento das economias ocidentais e o mostra o gráfico que compara a evolução dos lucros e do investimento nos EUA entre 1965 e 2005.

Este fenómeno, de natureza global, é regularmente comprovado por dados das mais diversas origens. Também observável na situação nacional, como é o caso de um estudo de Eugénio Rosa onde este mostra a evolução comparativa da repartição da riqueza reveladora que desde o início da crise (2007) que os ganhos do factor capital não têm deixado de crescer enquanto os do factor Trabalho têm caído de forma regular.

De um modo geral é seguro afirmar que ao encontro das pretensões dos teóricos da corrente neoconservadora e dos defensores da actuação na economia pelo lado da oferta (supply-side economics) a pressão tributária sobre as empresas diminuiu nas últimas décadas, com o recebimento de impostos das empresas em percentagem do PIB a diminuir gradualmente, e que isso tem sido acompanhado por um declínio gradual do investimento empresarial; na prática as empresas estão a distribuir uma parte crescente dos seus lucros pelos accionistas, o dinheiro está a acumular-se no topo da pirâmide social e não se notam os sinais de qualquer deslizamento até aos estratos mais desfavorecidos.

E se a situação em Portugal não é ainda pior dever-se-á ao facto das transferências sociais ainda conseguirem minimizar esse efeito.

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