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Sábado, Dezembro 21, 2024

ABC das eleições europeias

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Portugal destoou da vaga de participação eleitoral europeia aumentando o número dos abstencionistas e afirmando-se como um dos países com as maiores taxas de abstenção. Muito se tem falado mas pouco se tem acertado na caracterização do fenómeno.

  1. Abstenção

Em primeiro lugar, antes de ser um fenómeno popular, trata-se de uma idiossincrasia político-burocrática. Temos em Portugal uma ‘Comissão de Protecção de Dados’ que está à margem da realidade e que pensa que pode proibir o avanço tecnológico. Queira esta comissão ou não queira, há um admirável mundo novo que nos desnuda (não estamos já longe das máquinas de leitura do pensamento). A Comissão não tem poder nem competência para influir sobre essa realidade, apenas tem e deve exercer poder e competência no controlo ao uso feito dos dados recolhidos.

O primeiro passo a dar é assim o de abolir todas as restrições aos cruzamentos de dados pela administração pública, impondo apenas regras claras e aplicáveis de proibição de utilização abusiva desses cruzamentos.

Quando se diz às freguesias que elas são financiadas em função do número de eleitores e não do número de residentes, elas farão tudo o possível para atrasar o registo dos que morrem ou dos que partem, inflacionando os cadernos. As alterações dos últimos anos que, finalmente, eliminaram o número de recenseamento eleitor, reduzindo-o ao número do cidadão (e o mesmo deveria acontecer com o da segurança social e o fiscal) são um passo positivo, mas se depois se impõe o voto presencial a eleitores no estrangeiro que podem morar a enormes distâncias dos consulados disponíveis, é claro que vamos atingir abstenções exponenciais.

A possibilidade do cidadão emigrante português residente na Europa escolher entre o país de cidadania e o país de residência levou a administração portuguesa a, na base de um cruzamento de dados com a administração belga, privar do direito de voto um imenso número de cidadãos portugueses residentes noutros países europeus, porque a administração usou o cruzamento de dados de forma contrária à do respeito pelo cidadão que lhe era exigível.

Se é o cidadão que é responsável criminalmente se votar duas vezes, é ao cidadão que se deve perguntar onde ele quer votar e não substituir a sua decisão por mecanismos burocráticos que não asseguram a sua livre escolha.

Depois, em Portugal o cidadão não tem direito a escolher em quem vota dentro da lista da sua preferência, o que naturalmente o convida a ignorar um exercício onde ele é obrigado a confiar em mecanismos opacos de representação partidária.

Mas, mesmo que tudo isto fosse resolvido, acredito que a taxa de abstenção se manteria elevada.

Aqui, devo exprimir a minha total discordância com as duas explicações mais em voga. A primeira é a de que a oferta não é suficiente. O número de partidos concorrentes aumentou muito substancialmente e isso não teve qualquer impacto na abstenção, o que mostra que isto não é verdade.

Depois temos a explicação de que a culpa é dos políticos, o que fundamentalmente atribui aos cidadãos um estatuto de menoridade e de inimputabilidade característico de regimes paternalistas mas incompatível com o de regimes democráticos. Esse discurso cauciona e incentiva a abstenção e é ele mesmo a principal causa do fenómeno. É fundamental dizer que é o cidadão o responsável pela sua acção ou pela sua inacção e que os políticos fazem exactamente o que o cidadão os deixa fazer.

  1. A Europa a navegar à Bolina

A única tendência europeia que me parece claramente discernível nestas eleições foi a do crescimento em partidos que se apresentam como ecologistas (mesmo que por vezes, as suas credenciais sejam duvidosas).

Acho este desenvolvimento positivo, porque creio que este é um dos maiores desafios que temos pela frente. Posto isto, por exemplo, por várias razões, eu não apoiei o PAN. A primeira é a de que sendo eu claramente favorável ao bem-estar animal, não entro em extremismos ‘especistas’ que fazem com que prestemos mais atenção aos animais que às pessoas. A segunda é a de que achei o partido ‘verde’ no segundo sentido da palavra. Por exemplo, propor o voto aos 16 anos em vez de fazer propostas para que a participação eleitoral dos jovens aumente parece-me demagógico; não falar da maior ameaça ambiental que pesa sobre nós que é a da guerra nuclear, e não entender que esta é promovida pelo fanatismo religioso, é algo que não aceito.

Para além deste particular, não creio que possamos falar de vagas europeias, nem mesmo de vagas populistas ou nacionalistas. Na Dinamarca – um dos primeiros países a registar uma exponencial subida de um partido popular anti-imigrantes – o Partido Popular passou de primeiro a terceiro com pouco mais de um terço do peso anterior; na Alemanha, o AfD diminuiu o seu peso relativamente às últimas legislativas (embora o tenha reforçado em relação às europeias); mesmo em França, o partido de Marine Le Pen continuou a ser o primeiro mas com menos peso que anteriormente.

Os socialistas, como era esperado, observaram uma quebra acentuada, mas mesmo assim com importantes excepções como Portugal, Espanha e Países Baixos, com outros países a observarem alguma estabilidade. Se o declínio dos socialistas é inelutável, não creio que a sua existência como grupo autónomo esteja em causa, apesar das posições suicidas de António Costa que, se levadas à letra, poderiam levar à diluição socialista numa nebulosa macronista. Tanto ou mais importante do que isso é que, com raras excepções (como a Bélgica) os socialistas não viram reforçar-se à sua esquerda uma alternativa. A extrema-esquerda foi mesmo mais derrotada ainda do que a esquerda socialista.

Os populares europeus perderam posições perante os liberais, espelhando em larga medida o que se passou em França, mas nada que me pareça definitivo e que não possa ser invertido. O Partido Popular Europeu vai ficar dependente do que se passar com a sua componente húngara.

O Centrão europeu terá necessariamente de se modificar, alargando-se à família liberal e eventualmente aos Verdes, o que por si mesmo não representa uma ameaça vital ao ‘business as usual’ europeu.

O que me parece mais perigoso neste desenvolvimento é a possibilidade de deixarmos de ter uma Europa de partidos (ou seja, uma Europa onde convivem perspectivas diferentes) para passarmos a ter o partido da Europa e o partido contra a Europa, ou seja, passarmos a ter uma União Europeia moldada à imagem da União Nacional de má memória.

  1. A aposta ganha de Costa

Sob a batuta do Presidente da República, os partidos não-governamentais, à esquerda e à direita, ensaiaram uma ‘coligação vodka-laranja’ que faria explodir o orçamento e aniquilaria o único factor de estabilidade no Governo que é o Ministro das Finanças.

A fotografia dos dirigentes dos quatro partidos (PCP; BE; CDS e PSD) a cozinhar a lei em comissão tornou-se viral e fez com que António Costa aproveitasse a oportunidade para ameaçar bater com a porta acaso a nova maioria se concretizasse.

A aposta foi ganha, com o Primeiro-ministro a transformar habilmente as eleições europeias num referendo à estabilidade do seu governo e os portugueses a rejeitar o cocktail dando a Costa a confiança que lhes foi pedida.

Posto isto, ninguém discutiu seriamente a Europa ou sequer a competência e o acerto das posições dos vários candidatos, sendo que António Costa cozinhou a lista em família e nem sequer se deu ao trabalho de esclarecer quem ele propunha para Comissário Europeu.

Pior do que isso, passou boa parte da campanha a enaltecer o Presidente da República francesa e a sua ambição de ser o vencedor do escrutínio, desrespeitando os seus camaradas socialistas franceses, o que eu acho imperdoável e inqualificável.

António Costa ganhou a aposta, apesar dele mesmo mais do que graças a ele mesmo. Pessoalmente, dei-lhe o meu voto apenas por razões nacionais – creio ser importante assegurar uma presença europeia das regiões autónomas e penso que o cocktail vodka-laranja seria muito pior do que a geringonça – mas apesar da sua incapacidade de reformar a vida político-partidária, da sua ausência de visão europeia ou mesmo de qualquer reforma no país digna desse nome.

Se António Costa se convencer que a vitória nacional está no papo e que tudo lhe é permitido, pode vir a ter más surpresas.


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