(1889 – 1946)
Cientista e professor, pedagogo, artista plástico, prosador, crítico, filósofo, divulgador de ciência e de doutrinas e ideais progressistas. Brilhante e Invulgar homem da Ciência e das Artes, foi um antifascista que é lembrado ainda hoje (sobretudo no Norte) «como homem de honra e de coração». O enterro de Abel Salazar constituiu um momento de contestação do regime e uma imensa manifestação de luto.
Com a instauração da Ditadura Militar (1926) e, posteriormente, do Estado Novo (1933), apertou-se o controlo do Estado sobre as universidades portuguesas – que iria manter-se ao longo das décadas seguintes. Essa realidade reflectiu-se particularmente no afastamento compulsivo, por motivos políticos, de dezenas de professores, entre os quais, este professor histórico da Faculdade de Medicina. Defensor das ideias democráticas e humanistas e anti salazarista, Abel Salazar foi afastado da Universidade do Porto, em 1935[1]. Professor universitário, investigador científico e criador de Ciência, ficou, daí em diante, fora das Universidades portuguesas, sendo-lhe até vedada a entrada na Biblioteca da sua Faculdade. E sempre que pretendeu ausentar-se do país, a convite de instituições estrangeiras, viu tal pretensão recusada pelas autoridades.
Após o seu afastamento não deixou, no enarttanto, de prosseguir a actividade científica, artística e literária, o que lhe granjeou o reconhecimento nacional e internacional. Foi muito sentida a sua morte, em 1946. No seu enterro a população saiu à rua, em extraordinária homenagem a um dos mais importantes nomes da Ciência portuguesa do século XX e ao antifascista Abel Salazar.
O cientista e professor Abel Salazar
Abel Salazar nasceu em Guimarães, em 19 de Julho de 1889. Nessa cidade, completou a escola primária e fez uma parte dos estudos liceais no Seminário-Liceu. Em 1903 ingressou no Liceu Central do Porto, em S. Bento da Vitória. Já então se fazia notar pelo espírito republicano e democrático, que viria a marcar toda a sua vida. Inspirado pelo momento político, publicou, com outros estudantes, um jornal escolar de pendor republicano (O Arquivo), que reflectia não só os seus interesses pelos ideais revolucionários, mas também as suas aptidões artísticas. Em 1909 matriculou-se na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, provavelmente por influência familiar, pois mais tarde confessaria que o seu desejo era licenciar-se em Engenharia Civil. Terminada a licenciatura, apresentou a tese “Ensaio de Psicologia Filosófica”, à qual viu atribuída a classificação de vinte valores.
Em 1919, apenas com 30 anos, por deliberação do Conselho Escolar, foi contratado para reger a cadeira de Histologia e Fisiologia. Mais tarde, Professor catedrático de Histologia e Embriologia, fundou e dirigiu o Instituto de Histologia e Embriologia, centro homologado pelo Senado da Universidade do Porto com uma dotação financeira irrisória. Mesmo assim, Abel Salazar conseguiu levar a cabo brilhantes trabalhos de investigação. Em 1921 casa-se com Zélia de Barros, de quem não chegou a ter filhos.
Como investigador, efectuou múltiplas pesquisas, algumas das quais iriam torná-lo conhecido além fronteiras[2]. Entre 1919 e 1925, o seu trabalho ganhou fama mundial, sendo editado em inúmeras revistas científicas. Publicou centenas de trabalhos científicos; e, com Athias Marck e Celestino da Costa, fundou os Arquivos Portugueses de Ciências Biológicas, que chegou a dirigir.
Enquanto cientista e professor representou a Faculdade de Medicina da Universidade do Porto em diversos congressos e visitas realizados na Europa.
Como professor seguiu uma orientação pedagógica inovadora, defendendo um «ensino aberto», apoiado na observação, na investigação e na discussão científica, e promovendo o autodidatismo dos alunos.
Afastado da Universidade
Em 1926, ao fim de 10 anos de um notável trabalho em condições adversas, sofreu um esgotamento e interrompeu a sua actividade por um período de 4 anos. Quando regressou à sua faculdade, em 1931, animado de inúmeros projectos, foi surpreendido por uma enorme desilusão: o “seu” Instituto de Histologia e Embriologia encontrava-se praticamente ao abandono e desprovido da biblioteca. [«Tudo o que restava do Laboratório de Histologia coube numa carroça» – disse-se na altura e é testemunhado em fotografias]
Nos anos que se seguiram ao reinício da vida activa, reconstruiu o laboratório e prosseguiu o trabalho nas suas áreas de interesse, desde a Ciência, à Arte e à Filosofia. Ainda participou em dois Congressos dos Anatomistas (1932 e 1933) e escreveu obras e artigos, mas entretanto a situação política agravara-se e a Ditadura não admitia vozes críticas ou a divulgação de ideias democráticas. Foi assim que, sem surpresa, Abel Salazar se viu afastado da Universidade em 1935, pelo Decreto-Lei nº 25. 317 . Afastado da sua cátedra e do laboratório, foi ainda proibido de frequentar a biblioteca e de se ausentar do país. O motivo invocado para a sua expulsão deixa clara a actuação da Ditadura no campo do ensino: “a influência deletéria da sua acção pedagógica sobre a mocidade universitária”[3].
Produção artística variada
Fora da Universidade, centrou, então, as suas preocupações quer no domínio dos problemas sociais, (inspirado nos seus ideais progressistas e políticos), quer estéticos, literários e da produção artística.
Com o afastamento forçado da vida académica, Abel Salazar desenvolve em casa uma produção artística variada: gravura, pintura mural, pintura a óleo de paisagens, retratos, ilustração da vida da mulher trabalhadora e da mulher parisiense, aguarelas, desenhos, caricaturas, escultura e cobres martelados (muitos deles expostos na Casa-Museu Abel Salazar). Além da obra plástica, Abel Salazar “produziu uma significativa obra teórica, onde convergem arte, ciência e filosofia, organizando deste modo um corpo de saber deveras singular”[4].
Como pensador, escreveu essencialmente sobre a filosofia das Ciências e das Religiões, em livros, revistas e jornais como “O Diabo”, “Sol Nascente”, “O Trabalho”, “Esfera”, “Ed. Cosmos” e “Seara Nova”. Nos anos trinta e na qualidade de prosador, deu à estampa crónicas do tempo passado no exílio parisiense e pitorescas descrições, em obras como “As recordações do Minho Arcaico”. Na sua vertente de crítico de arte elaborou, entre outros, exaustivos estudos sobre Henrique Pousão, Soares dos Reis e Columbano. E na vertente de artista autodidacta, produziu uma vasta obra, na qual estão latentes o espírito humanista e o gosto pela experimentação: gravuras, pinturas (paisagens e retratos a óleo, ilustrações da vida da mulher trabalhadora e da mulher parisiense), pintura mural, aguarelas, desenhos, caricaturas, escultura e invulgares cobres martelados.
Em 1941, num período de alguma abertura do regime, voltou à Universidade do Porto para dirigir o Centro de Estudos Microscópicos da Faculdade de Farmácia, criado pelo Instituto para a Alta Cultura, por sugestão do Ministro da Educação Nacional. Apesar das evidentes restrições financeiras e materiais, conseguiu prosseguir a sua investigação. A partir de 1942 cooperou com o Instituto Português de Oncologia, a convite de Francisco Gentil, vindo a publicar um apreciável número de trabalhos científicos no Arquivo de Patologia Pública. Em 1944 publica um trabalho sobre Hematologia.
De autoria de Abel Salazar
Busto em gesso do Matemático francês Maurice Fréchet, da autoria de Abel Salazar. Foto do blogue António Aniceto Monteiro
Cortejo fúnebre
A morte surpreendeu-o aos 57 anos, em Lisboa, a 29 de Dezembro de 1946. Encontrava-se na capital havia dois meses, para tentar resolver os graves problemas de saúde com que se confrontava. O seu corpo foi trasladado para a cidade do Porto e o cortejo fúnebre teve de ser desviado quando seguia de Lisboa, para impedir que a Pide desmantelasse a manifestação. Entretanto, no Porto, foi-lhe prestada homenagem na Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, , para permitir que o Porto o homenageasse imediatamente. No dia 1 de Janeiro de 1947, milhares de pessoas desfilaram perante os restos mortais do “sábio” em câmara ardente, sendo ainda maior o número dos que acompanharam o cortejo fúnebre. As qualidades deste invulgar homem da Ciência e da Arte foram enaltecidas por Lobo Vilela, Ruy Luís Gomes, Eduardo dos Santos Silva[5], Virgílio Marques Guedes e Araújo Lima e pelo estudante Carlos Barroso. O caixão foi carregado aos ombros de cidadãos anónimos, que de dez em dez passos, eram rendidos. Junto ao mausoléu e as palavras finais foram proferidas pelo poeta Barata da Rocha. No dia seguinte, o seu amigo pessoal, Dr. Ruy Luís Gomes foi detido pela polícia política e interrogado acerca do que se passara no funeral. .
Abel Salazar escrevera no seu curriculum: «Além dos trabalhos científicos fiz na Universidade cursos sobre a Filosofia da Arte, conferências sobre a Filosofia, onde desenvolvi um sistema de Filosofia que acabo de constatar com satisfação ser bastante próximo da Escola de Viena. Foi o desenvolvimento deste sistema filosófico que, tendo desagradado à Ditadura e ao Catolicismo, foi a causa principal da minha revogação. Mas, como a ditadura não se podia basear nesta questão, ela torneou a questão, fazendo através da sua imprensa uma campanha de difamação, etc., após a qual me demitiu sem processo nem julgamento». Desaparecera um homem notável: Abel Salazar não só aprofundou o estudo do corpo biológico, através da microscopia, como estreitou os laços com o corpo social através da arte, utilizando diversas técnicas: o desenho, a pintura, a escultura. Além disso, produziu uma importante obra teórica, em que convergem arte, ciência e filosofia, que organiza todo um corpo de saber.
Enterro de Abel Salazar
O enterro de Abel Salazar, no dia 1 de Novembro de 1946, constituiu um momento de contestação do regime e uma imensa manifestação de luto. A população saiu à rua e acompanhou-o, em extraordinária homenagem, quer ao vulto da Ciência portuguesa do século XX, quer ao antifascista
Fundação Abel Salazar
Logo no ano da sua morte, foi criada a Fundação Abel Salazar, com os objectivos de preservar e divulgar a sua valiosa e diversificada obra artística. Em 1965 a Fundação Calouste Gulbenkian adquiriu a casa onde vivera durante 30 anos, em São Mamede de Infesta (Matosinhos), e todo o seu recheio. Em 1971 a mesma instituição comprou a colecção de obras do artista, que estava na posse de sua irmã. A Fundação Calouste Gulbenkian patrocinou obras de restauro da «Casa e Museu» e construiu um pavilhão de exposições, tendo doado o espólio à Universidade do Porto, em 1975.
A Casa integra a rede portuguesa de museus, desde 1989.
O espólio de Abel Salazar encontra-se disponível online, em resultado de um projecto conjunto entre a Casa-Museu Abel Salazar e a Fundação Mário Soares.
Em 2006 António Coimbra edita «Abel Salazar: 96 cartas a Celestino da Costa», escritas entre 1916 e 1945»[6].
Em 2016, Jaime Mendes publica “Correspondência de Abílio Mendes com Abel Salazar. Lisboa, Âncora Editora, 2016”, uma publicação que ajuda a perceber a dimensão humana deste cidadão[7].
[1] Na mesma altura, foram também expulsos da Universidade do Porto, entre outros, Aurélio Quintanilha, Manuel Rodrigues Lapa, Sílvio Lima e Norton de Matos.
[2] Contribuiu com trabalhos relativos à estrutura e evolução do ovário, acabando por criar o agora célebre «método de coloração tano-férrico de Salazar». Publicou cento e treze trabalhos científicos nas áreas dos aparelhos de Golgi e Para Golgi, Método Tano-Férrico, ovário, tecido conjuntivo, anatomia do cérebro, tecido celular, sangue, técnica de desenho microscópico e com outros temas.
[3] A academia portuguesa foi então privada de 33 prestigiados professores, pelo Decreto-Lei nº 25. 317 (“Diário do Governo”, I Série, n.º 108, de 13 de Maio de 1935): Nele se lê:
Procura o Govêrno realizar os fins que se encontram definidos no artigo 6.º da Constituição e em que pode resumir-se o seu objectivo fundamental: a defesa das instituições que consagra e através das quais se realiza a unidade moral e a ordem jurídica da Nação e se promove o seu desenvolvimento. Para realizar este objectivo é indispensável não só que os funcionários ponham a sua actividade ao serviço do Estado e cooperem com dedicação permanente e de modo que a sua acção atinja o máximo do rendimento, mas ainda que não perturbem a vida da Nação, quer no exercício das suas funções, quer fora delas, constituindo núcleos de resistência contra o próprio Estado e servindo-se para isso da autoridade que dêste lhes advém e do prestígio que lhes dá o exercício das funções confiadas à sua competência e actividade».
[4] Uma selecção das suas obras artísticas mais significativas foi apresentada ao público, em 2010, no Museu Nacional de Soares dos Reis, no Porto, na exposição comemorativa do centenário da República: “Transparência – Abel Salazar e o Seu Tempo, um Olhar” . Comissariada por Manuel Valente Alves, que sublinha “para pensar a sua obra no presente é importante entender não só a exemplar coerência interna do seu discurso e da sua prática, como também a relação que estabelece com os movimentos artísticos mais relevantes da época, nuns casos de empatia (como é o caso do impressionismo) noutros de oposição e corte ideológico (como é o da «arte pela arte» modernista) mas nunca de completa identificação”.
[5] Inteligência deslumbradora, tudo abrangendo e tudo compreendendo; sempre numa atitude de firme tolerância, que é a única arma capaz de romper os diques que a intolerância opõe à libertação do espírito; alma de generosidade espontânea, dissipando às mãos cheias os primores da Ciência e da Arte para que todos os colham e considerem seu património; Abel Salazar é figura dum transcendente humanismo, ultrapassando o tempo e o meio em que viveu.”
[6] Nas cartas transparece uma vida notável , de “dolorosa vivência quotidiana do pensador e artista, encerrado num meio difícil e numa época ingrata”, como afirma António Coimbra. A obra «96 cartas de Abel Salazar a Celestino da Costa» relata desabafos constantes de um cientista que tentava promover a ciência num meio fechado e agreste como era o Porto daquelas décadas, e num regime de ditadura. A correspondência estabelecida entre estes dois investigadores realça o espírito inigualável do investigador portuense Abel Salazar, que se destaca pelo desenvolvimento de um método colorimétrico para microscópia óptica, ainda hoje citado nos mais recentes manuais de histologia. Foi este método que permitiu a Abel Salazar observar o que então denominou de Para-Golgi, ainda mesmo antes da disponibilidade do microscópio electrónico..
[7] O livro “Correspondência de Abílio Mendes com Abel Salazar” traz à memória não só o mestre, como o seu discípulo Abílio Mendes, um médico e antifascista, com uma carreira notável, nomeadamente na formação de várias gerações de jovens médicos. .
Dados biográficos
- Casa Museu Abel Salazar
- Universidade do Porto: Centenário
- Antigos Estudantes Ilustres da Universidade do Porto: Abel Salazar
- Fundação Mário Soares: Abel Salazar
- Sol: Abel Salazar: o homem que era feito de mil homens
- Visita Guiada: Casa-Museu Abel Salazar
Transferência Bancária
Nome: Quarto Poder Associação Cívica e Cultural
Banco: Montepio Geral
IBAN: PT50 0036 0039 9910 0321 080 93
SWIFT/BIC: MPIOPTPL
Pagamento de Serviços
Entidade: 21 312
Referência: 122 651 941
Valor: (desde €1)
Pagamento PayPal
Envie-nos o comprovativo para o seguinte endereço electrónico: [email protected]
Ao fazer o envio, indique o seu nome, número de contribuinte e morada, que oportunamente lhe enviaremos um recibo via e-mail.