Poema inédito de Beatriz Aquino
Acordo aflita nesse dia de nuvens
Acordo aflita nesse dia de nuvens.
– o cinza adere bem aos pensamentos –
Remexo gavetas, dobro meias, rasgo papéis.
É a reinvenção de mim mesma que busco.
Alguma ponte entre esse eu que desconheço e o mundo prático.
Um aterro para apagar esses mil quilómetros de abismo entre mim e o viável.Ando cansada das sombras que meus medos fazem.
Das frestas que as minhas deficiências deixam,
frestas por onde entra um ar gelado
que deita um beijo de morte em tudo que é colorido.Não sei nada sobre amores.
Eles caem das minhas mãos como gotas em dia de chuva pesada.
E os vejo desfilar orgulhosos pelos córregos que se formam na calçada
e indo parar no rio caudaloso das minhas memórias.Ontem pedi ao Grande Homem, ao Grande Mestre,
que me desse um alívio, um aditivo.
Algo que me tornasse grande o suficiente para alcançar as prateleiras dos meus sonhos
e ali transitar entre eles como todos os outros seres humanos,
que temem, que choram, que esperneiam, mas que permanecem ali.Estou exausta desse meu ar de queda,
desse meu olhar de abismo.
Não há mão que sustente ou eleve essa pequena criança que sou.
E para essa criança, é sempre o momento entre o descuido do cervo
e o gatilho do caçador.
– e eu sou um alvo tão fácil… –
Desconfio que não haverá o grande dia.
O dia onde entre trombetas douradas se anunciará para mim
a chegada do amor.
O dia de paz onde quatro retinas se entendam,
onde vinte dedos se entrelacem,
onde dois corações acertem o compasso,
onde apenas dois corpos bastem…
O dia onde pousaremos finalmente os telescóspios e os mapas de busca.E confesso não saber o que fazer com essa quase constatação.
Deveria ser simples.
Deveria ser óbvio e de direito,
mas parece que um deus amargo nos desenha planos mais amplos.
Nos quer poetas, sensíveis, humanos.
O exercício daquilo que pensamos amor serve apenas para nos arrancar a pele.
Esse deus gosta de nos ver trêmulos e febris em plena chuva.
Deve ser ali o momento da nossa redenção.
Deve ser essa a nossa hora mais bonita.
Sozinhos, no escuro, falando línguas que o outro não entende,
buscando algo que não se pode alcançar.Sim, o amor é apenas um grande tubo de ensaio manuseado pelas mãos invisíveis das circunstâncias.
Onde nós, infantes e desavisados, aprendemos a imitar o eterno
gesto das estátuas dos anjos…
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