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João de Sousa

Sábado, Dezembro 21, 2024

Acordo Mercosul e União Europeia

A viagem do capitão para Osaka, com o intuito de participar da reunião do G-20, tinha tudo para se converter num verdadeiro fiasco. Começou com o escândalo do “aerococa”, envolvendo um sargento FAB, integrante da comitiva presidencial, flagrado com uma mala contendo 39 kg de cocaína no aeroporto de Sevilha, durante uma escala na Espanha.

Em seguida, vieram as saias justas apresentadas pelas lideranças europeias, em especial da parte de Angela Merkel (Alemanha) e Emmanuel Macron (França), exigindo recuos oficiais de Bolsonaro a respeito de temas sensíveis, como o meio ambiente.

As fotos e imagens do encontro no Japão, onde os chefes de Estado se apresentam para a História, ofereciam o triste retrato do isolamento diplomático a que o Brasil vem sendo empurrado desde outubro do ano passado. O atual ocupante do Palácio do Planalto aparece sempre num canto, desprestigiado, aquela figura perto de quem ninguém quer aparecer nem ficar. Vergonha alheia. Mas eis que, de repente, sinais são subitamente emitidos desde Genebra, na Suíça. E a comitiva presidencial busca se agarrar como pode no anúncio da finalização das negociações em torno do Acordo de Livre Comércio entre Mercosul e União Europeia. Ufa, que alívio!

A verdade é que Bolsonaro voltou do Japão sem nada de concreto ou de positivo para apresentar ao nosso País, com exceção de seus apertos de mão e elogios recíprocos trocados com Donald Trump. Argh! A realidade que fala mais alto é a insistência de seu Ministro das Relações Exteriores em priorizar temas que apenas contribuem para aprofundar as dificuldades dos nossos diplomatas nas negociações com seus pares de outros países. Assim foi com a insistência em mudar a Embaixada brasileira para Jerusalém ou com os repetitivos pronunciamentos justificando a intolerância de todos os tipos. Uma tragédia.

Do fracasso do G20 ao Acordo com União Europeia

Bolsonaro sempre se manifestou contra os caminhos adotados pela unificação dos países aqui na porção meridional da América. Seus pronunciamentos contra o Mercosul são conhecidos desde os tempos em que o militar, punido por indisciplina no Exército, converteu-se em deputado federal excêntrico e direitista. Por outro lado, sua visão chauvinista e pseudo-nacionalista também o fazia ser um crítico da União Europeia. Para além da guerra – que ele pretende chamar de “ideológica” – contra China e Rússia, resta apenas um alinhamento automático e subserviente aos desejos dos Estados Unidos e de Trump.

Mas agora ele vai para os holofotes em uma tentativa – um tanto desajeitada para quem conhece seu currículo, diga-se de passagem – de vender a imagem de um grande negociador, que teria conseguido apresentar um acordo entre os integrantes do bloco europeu e os nossos vizinhos aqui do sul. No entanto, convenhamos que se trata de missão bem difícil convencer quem acompanha o tema há tanto tempo.

As negociações para esse fim tiveram início há mais de 20 anos, em 1999, ainda durante o governo FHC. Como todo tipo de acordo comercial, esse também envolveu – e ainda envolve, com toda a certeza – um sem número de temas polêmicos e aspectos sensíveis para cada uma das partes envolvidas. Com o agravante de que a negociação entre blocos também precisa levar em conta as particularidades de cada um dos países integrantes de cada bloco. Ora, frente a um mosaico tão complexo como esse, nada mais compreensível que os tempos sejam assim tão lentos para se chegar a uma versão mais próxima de um consenso.

Diante desse quadro, surge a pergunta inevitável. Por que, passados mais de 200 meses de vai-e-vem entre os negociadores, em apenas 6 meses de um governo que sempre se colocou contra o acordo, chegou-se a uma solução quase definitiva? As respostas tampouco são simples. Porém, o aspecto essencial refere-se à profunda crise na esfera das relações internacionais, em razão do tom semi belicoso das disputas comerciais entre o governo dos Estados Unidos e a China. A Rússia também segue tangenciando esse clima de tensão e a falta de perspectivas claras em relação a um cenário de médio ou longo prazo contribuem para arrefecer os negócios em escala global.

Acordo para europeu ver

Com isso, os atores iniciam estratégias de busca de parceiros alternativos, para evitar a dependência da incerteza no eixo sino-norte-americano. Esta parece ser a intenção da União Europeia em acelerar o ritmo das negociações nos tempos mais recentes. Os dois principais membros do Mercosul (Argentina e Brasil) passam por momentos de crise interna e tudo indica que devem ter perdido um pouco a mão nas tratativas com os seus interlocutores do outro lado do Atlântico.

É importante frisar que os termos oficiais e detalhados do acordo ainda não foram divulgados. Mas o que se sabe é que ele avança bastante na liberação do fluxo de comércio com redução ou eliminação de tributos e outros entraves nas trocas entre os dois blocos. No entanto, como esse tipo de procedimento incomoda interesses cristalizados em todos os países, é necessário ver o texto definitivo para sabermos como serão implementadas as medidas e quais serão suas consequências econômicas e sociais.

De todo modo, ao contrário do que tentam nos iludir Bolsonaro e sua equipe, os efeitos não serão sentidos logo ali na esquina. Muito pelo contrário. Para que os termos do acordo entrem em vigor, cada bloco deverá ratifica-lo internamente em cada um dos países. São processos políticos e parlamentares longos, sujeitos a muita pressão e negociação. A consolidação plena das novas condições de maior liberdade comercial entre União Europeia e Mercosul levará um bom tempo até ser alcançada. Assim, apostar todas as fichas de que a simples divulgação da intenção impulsione alguns pontos no nosso PIB é mais uma falácia sem sustentação na realidade.

Reprimarização de nossa economia

Apesar de não serem públicas todas as regras e dispositivos do acordo, podemos avançar com algumas hipóteses, tendo em vista o histórico de duas décadas de negociação. O mais provável é que se mantenham os rascunhos iniciais, onde se identifica a tendência dos países do Mercosul em se especializar na exportação de produtos primários, particularmente minérios e “commodities” agrícolas. Ocorre que existe uma enorme resistência dos produtores rurais no continente europeu a esse tipo de liberalização, uma vez que a atividade é altamente subsidiada por lá. A produção e comercialização do campo são bastante protegidas nos países e existe também um instrumento importante de âmbito europeu – a Política Agrícola Comum (PAC).

Isto posto, é muito difícil imaginar um cenário em que os governos europeus aceitem entregar seus setores agrícolas à concorrência da produção originária do Mercosul. Apesar do viés conservador de suas políticas públicas, não creio que haja espaço para o tipo de obsessão entreguista que vemos grassar aqui em nossas terras.

Na direção oposta, os europeus têm todo o interesse de ampliar as exportações de produtos industrializados para o continente sul-americano. A redução das barreiras impostas a esse fluxo de comércio pode se converter em importante mecanismo para que os mercados brasileiro e de nossos vizinhos sejam atingidos pela produção do velho continente. O processo é ainda mais facilitado tendo em vista as reduzidas resistências que costumam ser impostas entre os agentes internos frente a esse tipo de abertura comercial. As elites por aqui ainda se sentem iludidas com a possibilidade de consumo das marcas importadas. Très chic!

Ao longo das últimas três décadas o Brasil – e também o Mercosul – viveu um processo agudo de desindustrialização. Políticas de juros elevados e política cambial de sobrevalorização do real foram minguando aos poucos o espaço da atividade industrial interna, principalmente em relação à incapacidade de prover alguma resistência frente às importações de manufaturados. Por aqui, abertura comercial foi sinônimo de destruição do parque industrial. Assim, tudo indica que o processo vai ter continuidade.

Romper com subordinação!

A maior probabilidade colocada no cenário é que seja aprofundado o processo de divisão neocolonial do trabalho. Os países em desenvolvimento permanecem com sua especialização em exportar bens primários e de baixo valor agregado, ao passo que continuam totalmente dependentes da importação de bens industrializados e manufaturados, de alto valor agregado. Isso para não incluir os setores de serviços e de insumos tecnológicos, onde a assimetria entre os dois blocos é mais do que evidente. A tendência é de continuidade do processo de reprimarização de nossos economias.

A naturalização desse tipo de desigualdade é instrumento de dominação dos mais poderosos no cenário internacional e de perpetuação da relação de dependência. Esse nó de perversidade apenas pode ser desfeito com a afirmação de uma vontade própria dos países sujeitos a tal espoliação. Mas para tanto é fundamental a existência de um projeto de desenvolvimento orientador de estratégias a serem adotadas. E também a certeza de que se faz essencial o protagonismo do setor público, por meio da ação de empresas estatais, de políticas públicas afirmativas desse norte e orçamento alocando recursos nos setores que se pretende estimular. Isso significa romper com a atual subordinação à lógica dos desenvolvidos.

Conhecendo os governos Macri e Bolsonaro, é muito provável que os termos do acordo não sejam de interesse da grande maioria da população dos principais países do bloco de cá. Por outro lado, o profissionalismo e a competência da diplomacia europeia na defesa dos desejos de seus representados devem nos alertar para os riscos de descompasso nos dispositivos a serem referendados pelos parlamentos locais.

Nada está definido por enquanto. Basta ver a grita dos agricultores europeus contra a medida e as pressões de seus governos para obter compromissos explícitos do governo do Brasil no que se refere à política ambiental. Assim, do nosso lado é necessário também que os setores afetados se manifestem para pressionar Bolsonaro. Esse é caso concreto da indústria brasileira, que pode ser ainda mais reduzida do que tem sido ultimamente. Onde estão seus líderes? Mesmo vale para os representantes dos trabalhadores, que deverão ver ainda mais distantes as possibilidades de recuperação do emprego com tal projeto de subordinação aos interesses estrangeiros.


por Paulo Kliass, Doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal   | Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado


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