A erupção de uma nova vaga de activismo climático com reivindicações que muitos consideram excessivas, até pelos prazos colocados para a sua satisfação, o discurso concentrado na “causa”, tipo “Testemunhas …” e os métodos utilizados para chamar a atenção, como a colagem dos activistas a telas expostas nos museus ou o derrame de produtos sobre elas (com a preocupação, é certo, de não danificar irreversivelmente) com a intenção de dar origem a pequenos conflitos com a polícia ou com a justiça, eles próprios chamativos de atenção, parece à primeira vista não grangear apoios e condenar os seus protagonistas ao isolamento. Mas leva a que se fale da “causa” e aparentemente neste tipo de “activismo” é essencialmente isso que se pretende.
Pessoalmente, sempre me distanciei de tal activismo, talvez por me ter “viciado” em dois tipos de movimentos – o movimento associativo estudantil e o movimento sindical – que, ambos, visam representar interesses e procuram a sua legitimação junto dos representados(i).
É certo que com a queda de participação, que de algum modo reflecte a quebra de democracia interna, a capacidade de mobilização dos sindicatos diminuiu, a ponto de em certas épocas a CGTP e os seus sindicatos terem vindo expressamente a optar por convocarem concentrações de “dirigentes, delegados e activistas sindicais”.
O activismo que descrevi sempre teve contudo grande expressão nos países anglo – saxónicos e registou um desenvolvimento muito conhecido com o movimento das sufragistas. Permitam-me recordar os momentos do filme Mary Poppins em que uma senhora “da alta” vem contar ao seu pessoal doméstico as manifestações de rua, as detenções das suas companheiras pela polícia, as idas a tribunal destas, num esforço que as suas filhas talvez viessem a reconhecer e de que talvez viessem a beneficiar (Sister Suffragette).
Manifestações recentes de activismo climático
Os discursos ambientalistas têm já alguma tradição em Portugal, mas só recentemente tiveram duas traduções práticas verdadeiramente significativas:
- a venda da Partex pela Fundação Gulbenkian, que se separou assim das fontes de riqueza do seu fundador, ficando António Costa Silva, que acumulava a presidência da Partex com o ensino do IST, livre para propor planos e para ir coordená-los como Ministro da Economia;
- o abandono dos projectos de exploração dos recursos pressentidos ou mesmo identificados nas costas alentejana e algarvia e em outros locais de Portugal continental que muito se deve aos esforços das respectivas populações e autarquias e à utilização da via judicial.
Tanto a qualidade de vida como o turismo poderiam ser postos em causa pela proliferação de explorações que iriam pelo menos ofender a paisagem, propiciar riscos de poluição em caso de acidente, criar possibilidades de contaminação de aquíferos.
De resto temos já um Ministério do Ambiente e Ação Climática (espero que seja esse ainda o nome) que tutela tudo e mais alguma coisa, incluindo a rede de metro de Lisboa, e estamos sintonizados com as discussões europeias sobre o assunto. Que espaço resta para os “activistas climáticos” da extração mais recente?
Manifestarem-se na rua? Temos uma lei totalmente liberal sobre manifestações, vigente desde os governos provisórios de 1974, que Eduardo Cabrita não conseguiu actualizar. Desde que se faça uma comunicação à Câmara Municipal ninguém vai preso. E se a Câmara fizer circular a comunicação ainda é ela punida à conta da Protecção de Dados. De qualquer modo, parecem ser muito poucos.
Manifestarem-se em outros espaços? Como felizmente não lhes deu para “vandalizarem” o Centro Cultural de Belém ou o Museu de Arte Antiga, estimaram, talvez acertadamente, que a ocupação de escolas e de edifícios públicos lhes daria a requerida projecção na comunicação social.
E escolheram um vilão de estimação, António Costa Silva. Por cheirar ainda a petróleo apesar da Partex ter sido vendida? Por acreditarem que o Ministro da Economia mandava nas empresas?
A “marcação” dos activistas a António Costa Silva levou primeiro à ocupação de um edifício que estava a ser visitado pelo Ministro, desmobilizada por alegadamente pertencer a uma organização privada(ii), à marcação de uma reunião no Ministério da Economia e à detenção dos activistas que à saída, fizeram um simulacro de ocupação, sendo logo detidos e presentes ao Ministério Público, aceitando deste uma suspensão provisória do processo com contrapartida na prestação de trabalho comunitário e anunciando a suspensão das iniciativas até nova oportunidade.
Na Faculdade de Letras de Lisboa a ocupação das instalações demorou mais tempo e terminou com a intervenção da polícia a requerimento do Director Miguel Tamen, tendo sido detidos numa sexta-feira à noite 4 estudantes que se haviam disponibilizado para assegurar durante o fim de semana uma ocupação simbólica.
A mobilização de forças anti-motim para o efeito mereceu críticas, muito embora não pareça não havido suporte para as alegações de brutalidade policial que chegaram a ser veiculadas. Quanto à evocação das entradas da polícia no tempo de Salazar parecem desajustadas: com Salazar possivelmente este grupo minoritário já estaria identificado pela PIDE, e possivelmente infiltrado ou desmantelado.
Mas que estes desenvolvimentos tenham ocorrido em “democracia” é um tanto insólito e obriga a reflectir sobre a qualidade da democracia na Universidade, que resultou das opções de Mariano Gago, de onde parece que desapareceram as associações de estudantes e as regiões gerais de alunos. Aliás o Conselho Geral da Universidade de Lisboa criticou este desenvolvimento e o “Diretor de Faculdade” que o promoveu, o que não impediu a condenação em Tribunal dos 4 estudantes, após terem, nas primeiras sessões do julgamento (recusaram a suspensão do processo que lhes fora oferecida) tido ocasião de apresentarem as suas razões.
Da Faculdade de Letras de Lisboa conheço o claustro onde em 1989 um grande número de professores universitários se foram sentando à espera do começo da reunião que haveria de arrancar com um movimento interescolas que se prolongou por vários meses, pôs em causa as provas de acesso ao ensino superior, e constituiu um marco na história do sindicalismo docente em Portugal, e o anfiteatro em que reuniram (reunimos) a seguir. Conheço os nomes de alguns professores e leitores que posteriormente participaram no SNESup. Conheço ainda a biblioteca, que com profissionalismo, tratou em anos mais recentes, duas ofertas de livros por mim publicados.
A Internet revelou-me que Miguel Tamen, de Teoria da Literatura, era filho de Pedro Tamen, em tempos ligado a O Tempo e o Modo(iii). Li também o artigo de opinião de Carmo Afonso no Público de 16-11-2022, “Os Jovens Ativistas do Clima e os velhos do Costume”. E sobretudo identifiquei nos Ensaios da Fundação(iv) um texto, assinando por António M. Feijó, ao tempo Diretor da Faculdade de Letras, e Miguel Tamen com o título “A universidade como deve ser”, título que é todo um programa.
Demos então a palavra a Miguel Tamen.
As justificações de Miguel Tamen
O Diário de Notícias de 14-11-2022 veio a publicar sob o título “Diretor da FLUL: ocupação da faculdade por ativistas climáticos é ‘inaceitável’ “excertos de um comunicado “interno” do referido Director Miguel Tamen, cuja selecção sigo infra.
‘As suas ações perturbaram deliberadamente a realização de aulas, de avaliações, de eventos e a circulação nos nossos espaços. A direção recebeu várias queixas de docentes, estudantes e funcionários´, adianta Miguel Tamen.
O diretor da FLUL diz que a faculdade falou ‘muitas vezes com os ocupantes; nunca nos recusámos a fazê-lo’.
Chamando as conversações com os estudantes e ativistas de ‘inconclusivas’, Miguel Tamen explicou que as exigências que os ativistas apresentaram à faculdade foram divididas em três grupos: um grupo de exigências que ‘não nos compete satisfazer (por exemplo, a demissão de um ministro ou a redução da utilização de combustíveis fósseis no país)’; outro grupo de exigências que ‘podemos considerar satisfazer (por exemplo o aumento de casas de banho sem género marcado)’; e um outro grupo de exigências que ‘não deveremos nunca, em meu entender, satisfazer (por exemplo o despedimento de professores suspeitos de assédio sem procedimento legal devido, a existência de ações obrigatórias de sensibilização destinadas a professores e funcionários, a criação de unidades curriculares com conteúdos pré-determinados, ou a tomada pública de uma posição favorável às suas exigências pelo diretor da Faculdade).’
…
Para o fim do comunicado, Miguel Tamen congratulou-se com a resposta da faculdade de letras e declarou que ‘a ideia de que uma comunidade autónoma como a Faculdade possa ser ocupada desta maneira é para nós inaceitável,’ adiantando ainda que ‘é por essa razão que não podemos nem devemos enquanto universidade ser porta-vozes de quaisquer causas (…) A Faculdade orgulha-se com razão de ser um espaço de liberdade de expressão, coexistência e livre-circulação; e eu concordo completamente com estas ideias.’
As reivindicações dos activistas climáticos parecem estar contaminadas pela ideologia de género e pelos reflexos da epidemia de casos de assédio sexual na vizinha Faculdade de Direito, aspectos que deixarei fora deste artigo.
Mas a ideia de que a Faculdade não deve ser porta voz de quaisquer causas e deve ser um espaço de liberdade de expressão, coexistência e livre-circulação pode legitimar a resistência a pressões que poderão ser muito graves.
O movimento associativo dos anos 1950 também lutou para que as Associações de Estudantes fossem consideradas apolíticas, por forma a permitir que não fossem obrigadas a participar nas manifestações políticas do regime.
No entanto em relação às causas climáticas a própria Universidade de Lisboa inclui nos seus valores a RESPONSABILIDADE AMBIENTAL:
- Liberdade intelectual e respeito pela ética
- Inovação e desenvolvimento da sociedade
- Participação democrática
- Responsabilidade social e ambiental
Faria todo o sentido, transferindo a organização para a própria Universidade, equacionar um programa de debates sobre clima e a criação de cursos livres com alguns dos temas propostos.
Miguel Tamen foi, com António M. Feijó, um dos defensores da licenciatura em Estudos Gerais. Terá perdido a flexibilidade de raciocínio?
Quanto à liberdade de expressão, Tamen, com Feijó, no ensaio sobre “A Universidade como deve ser”, contrapõem claramente Estado e Universidade.
O apelo à Polícia, ou seja, ao Estado na sua face menos simpática, surge na mini-crise de Letras como uma forma de pôr fim a um processo em que a capacidade de diálogo de Tamen atingiu os limites e apesar de a ocupação ter sido reduzida a um nível simbólico. É sobretudo nesse aspecto que o Conselho Geral o critica. Que se passou no espírito de Miguel Tamen?
Protagonistas iludidos e finalmente traídos?
Não conheço os protagonistas da ocupação simbólica de Letras e os colegas que tentaram exprimir-lhes o seu apoio. Vejo que tiveram, como se costuma dizer, boa imprensa, sobretudo da parte do Público.
Até agora, foram iludidos pela própria Universidade que se propõe “valores” que tentaram honrar, sem que a instituição os assegure na prática.
A autonomia garantida às Universidades diz respeito às suas instituições e não às suas unidades orgânicas. Mas a tradição “federativa” da Universidade Técnica parece ter contagiado, aquando da fusão, todas as unidades orgânicas. Miguel Tamen parece ver-se como um Reitor de Letras. A posição de 25 de Novembro do Conselho Geral aponta para uma correcção da forma como os “Directores de Faculdade” se vêem. Mas não é certo que tal venha a suceder e que a Reitoria o assuma.
O Conselho Geral afirmou que competiria ao Reitor “autorizar” o recurso à polícia e que aquele nem sequer teria conhecimento. Mas se o Reitor comunga deste entendimento deveria tê-lo comunicado ao Ministério Público ou vir dizê-lo a Tribunal. Duvido que fosse possível, nessa circunstância, proferir as condenações.
O Público noticiou as decisões do tribunal como sendo de condenações por “desobediência civil”. Ora tal crime romântico não existe no Código Penal as condenações foram por desobediência e, tanto quanto percebi, também por introdução em espaço vedado ao público. Ficam no cadastro dos condenados(v). Os jornalistas do Público não deveriam iludir os leitores.
Não conheço os condenados. Mas a situação faz-me lembrar aquela em que Adriano Moreira, jovem advogado que actava em representação da família do General Godinho, falecido na prisão, foi preso por exigir a responsabilização do Ministério da Defesa. Salazar – o mesmo Salazar que os ocupantes tentaram meter nesta história – terá acabado por dizer que o único que se tinha portado bem fora Adriano Moreira. Talvez se possa dizer o mesmo dos 4 estudantes e activistas climáticos:
Resolução do Conselho Geral da Universidade de Lisboa
Na noite de 11 de novembro do corrente ano, deslocou-se à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa uma força policial que bloqueou a sua entrada principal, enquanto um seu contingente com parafernália antimotins deteve no seu interior e fez posteriormente presentes a Juiz quatro estudantes da Faculdade, que efetuavam um protesto pacífico no âmbito da chamada Greve Climática Estudantil.
- Não foi observável, ou alegado, que o referido protesto pacífico pudesse constituir uma ameaça para a vida ou integridade física quer dos próprios, quer de qualquer outro membro da comunidade académica, nem que fosse expectável a prática de algum crime dele decorrente.
- Foi verificado, através de Circular emitida pelo Diretor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e datada de 13 de novembro do corrente ano, que a referida força policial foi chamada a intervir no interior dessa Faculdade pelo seu Diretor.
- Foi igualmente constatado que desse ato administrativo do Diretor da Faculdade de Letras desta Universidade não foi dado conhecimento nem pedida autorização ao Magnífico Reitor.
- É ainda verificável que, da intervenção policial na Faculdade de Letras desta Universidade, não resultou um desanuviamento e melhores condições de funcionamento da Faculdade mas, pelo contrário e conforme seria expectável, um aumento de tensão que compromete o seu regular funcionamento.
Face ao ocorrido e explanado, o Conselho Geral da Universidade de Lisboa, na sua condição de órgão de decisão estratégica e de supervisão da Universidade, delibera e torna público que:
- Considera que o ato administrativo praticado pelo Diretor da Faculdade de Letras desta Universidade, ao solicitar intervenção policial no interior da Universidade sem que existisse ou estivesse iminente qualquer crime ou ameaça pública, é contrário aos elementares princípios e praxis universitários e, consequentemente, motivo de grande perplexidade e indignação por parte deste órgão e da comunidade académica.
- Não se tendo verificado qualquer crime ou ameaça pública, nem sendo a chamada de intervenção policial consentânea com práticas académicas desejáveis, apela-se a que sejam consideradas nulas quaisquer sobrevenientes acusações judiciais aos estudantes que dela foram vítimas.
- Considera ainda que a prática de tal ato administrativo, nas condições indicadas, por parte de um Diretor de Faculdade desta Universidade, é um motivo de profunda preocupação para a Universidade de Lisboa, dificilmente compaginável com o exercício de tão elevadas e responsáveis funções académicas.
Lisboa, 25 de novembro de 2022
O Conselho Geral da Universidade de Lisboa.
Notas
(i) Vi, com a melhor das intenções, descrever José António Ribeiro Santos como activista de movimentos estudantis. Mas embora tenha ingressado na FDL em 1965, quando foi eleito mais tarde para a Direcção da AAFDL ocupou o lugar de Vice-Presidente para as Relações Internas, pois que se sabia relacionar com os estudantes mais jovens, sendo em 1972, quando foi morte por um agente da PIDE, Presidente da Mesa da Assembleia Geral, cargo associativo que já fazia sentido, como quartanista, que ocupasse, pelo menos para efeitos de organização da lista.
(ii) Em rigor, a Ordem dos Contabilistas Certificados é uma associação pública, tutelada pelo Governo.
(iii) Falecido em 2021.
(iv) Do Pingo Doce, como um amigo costuma recordar.
(v) E, espero, na memória de quem suscitou a intervenção policial.