Na contramão do discurso pomposo das elites e das camadas que almejavam se inserir na alta sociedade ostentando uma linguagem preciosa, Adoniran brincou com o modo de falar do povo paulistano, exagerando o sotaque interiorano, a influência italiana e negligenciando o plural e as concordâncias verbais.
Cantou tragédias do cotidiano, lamúrias de moradores que eram engolidos pelas construções de arranha-céus. Definiu tipos urbanos: os despejados das favelas, os engraxates, a mulher submissa que se revolta e abandona a casa, o homem solitário. Adoniran criou o que no teatro se chamaria de clown do paulistano, uma auto-imagem exagerada: o homem talhado pelo trabalho com as máquinas, com seus horizontes estreitos, recortados pelas edificações, habituado ao ritmo das construções e dos veículos que circulam pela cidade, um homem melancólico, pragmático, contido e com senso de humor singular.
Segundo o naturalista francês Auguste Saint-Hilaire, por ter permanecido séculos no que ele chamou de isolamento empobrecedor, preso ao alto da serra sem comunicação com o Atlântico, o povo paulista desenvolveu forte consciência de autonomia. Esta cultura só mudou com a construção do caminho do mar, que transformou a civilização paulista. A curva do progresso acompanhou a curva do tráfego da estrada de ferro, a partir da inauguração da São Paulo Railway, em 1867.
Mas, conforme enfatiza Saint-Hilaire, àquela altura o paulista já tinha sua identidade de homem do interior. Entre o fim do século 19 e início do século 20, São Paulo era a região com menor influência de Portugal. Com o ciclo do café, uma grande massa de imigrantes povoaram as terras paulistas. Entre eles os italianos em maior número, marcaram os traços fundamentais da identidade deste povo.
Em pouco tempo a acanhada cidade passou de centro regional a metrópole nacional. Durante a República Velha (1889-1930) São Paulo se industrializou, chegando a seu primeiro milhão de habitantes em 1928. A expansão da cidade para o oeste, facilitada pela criação do viaduto do Chá em 1892, aumentou o trânsito entre as duas margens do Vale do Anhangabaú e impôs a necessidade da construção de mais uma ponte que poupasse os cidadãos e os veículos de carga das agruras da ladeira de São João. Tal necessidade pontual simbolizou as transformações daquele tempo.
Para saná-la foi erguida uma estrutura de metal de 225 m de comprimento em estilo Art nouveau, projetada pelos arquitetos italianos Giulio Michetti e Giuseppe Chiapori. O Viaduto Santa Efigênia nascia, desta forma, em 26 de setembro de 1913, com um desenho que remetia à Belle Epoque do fim do século 19.
Mais de 50 anos depois, na década de 1970, aquele símbolo que tanto orgulhava os paulistanos quase virou sucata. Com a construção do metrô que atravessava o subterrâneo do centro de São Paulo o viaduto parecia desnecessário. Mas, diante de protestos da população, as autoridades logo descartaram este assassinato arquitetônico no coração da cidade, e reformaram o Santa Efigênia, destinando-o exclusivamente a pedestres.
Adoniran Barbosa, que já andava pelo viaduto, encontrou, em certa tarde o compositor Nicola Caporrino no Centro de São Paulo. A conversa sobre a frustrada demolição logo virou samba. A ponte art nouveau, que liga o largo de São Bento ao de Santa Efigênia acabou entrando, desta forma, para a cultura popular na voz rouca de Adoniran Barbosa com a música Viaduto Santa Efigênia.
Nela o cantor fala à uma suposta Eugênia, chamando-a para ver: como ficou bonito o Viaduto Santa Efigênia, e sugerindo que ali ela viveu os momentos mais importantes de sua vida: “Foi aqui, Que você nasceu Foi aqui, Que você cresceu Foi aqui que você conheceu O seu primeiro amor”.
Como em suas outras músicas o cantor revestiu a passarela de memórias e de histórias pessoais. Com elegância ele traduziu sentimentos particulares de pessoas humildes, de vidas marcadas pelo compasso do trabalho, sentimentos de quem contempla, com alheamento, o crescimento da cidade: “Eu me lembro, Que uma vez você me disse, Que um dia que demolissem o viaduto, Que tristeza, você usava luto, Arrumava sua mudança, E ia embora pro interior, Quero ficar ausente, O que os olhos não vê, O coração não sente, diz a música”.
Para João Rubinato, o Adoniran, a vida operária não era mera abstração. Suas próprias experiências serviram-lhe de matéria prima. Nascido na cidade de Valinhos, interior de São Paulo, onde seus pais Ferdinando e Emma Rubinato se radicaram ao chegarem da Itália, trabalhou nos vagões de carga da estrada de ferro, foi tecelão, pintor, encanador, serralheiro, mascate, garçom entregador de marmitas, varredor, ajustador mecânico entre outras coisas. Família pobre, os Rubinato mudaram várias vezes de cidade, migrando para onde houvesse empregos. De Valinhos foram para Jundiaí, depois para Santo André e finalmente para São Paulo, quando Adoniran já contava com 22 anos.
Para que começasse logo a ajudar a família e os sete irmãos, João teve a data da certidão de nascimento adulterada. Nascido em 1912, ganhou forçosamente dois anos a mais para não gerar problemas com a justiça que estabelecia a idade mínima de doze anos para o ingresso no mundo do trabalho. Seu registro passou, então, a indicar que João Rubinato nasceu em 6 de agosto de 1910, há 110 anos.
Adonira Barbosa, entretanto, viria a nascer anos depois
Quando chegou a São Paulo, na década de 1930, João estabeleceu um vínculo com a cidade que duraria até o fim da sua vida, em 1982. Naquela época a cidade já sintetizava o intenso processo de urbanização que vivia o Brasil.
O rádio, que dava o tom daquelas transformações criava modas, mudava os costumes, instigava o povo e exercia poder e extensão pouco comuns para um país predominantemente rural.
O samba-canção que explodia pelas ondas do rádio no fim dos anos 30, desfiava seus amores e suas desventuras em um cenário de construções, de transportes, e do cotidiano operário. Segundo José Ramos Tinhorão (em Pequena História da Música Popular), este gênero atendia a demanda por lazer da nova camada urbana, representando a média do gosto nacional. Ainda segundo Tinhorão, o samba-canção reinou até a década de 1940, quando se iniciou a esmagadora inserção da música norte americana e dos primeiros enlatados, empurrados pelo mercado internacional.
De qualquer forma o rádio, a partir dos anos de 1930, instigou as aspirações artísticas e a busca pela fama entre o povo brasileiro.
E João Rubinato, desde tempos remotos queria era ser artista. Tentou o palco e foi repetidamente rejeitado. Buscou conquistar seu espaço como cantor em programas de calouro, como o de Jorge Amaral, na Rádio Cruzeiro do Sul. Após muitos gongos, conseguiu se classificar com o samba Filosofia, de seu contemporâneo Noel Rosa, em 1933, chegando a assinar um contrato como cantor para um programa semanal.
Foi a deixa para o início de uma carreira profícua. O novo artista que despontava precisava de uma nova identidade. Teve, então a ideia de homenagear, conjuntamente, o amigo de boemia Adoniram e o sambista Luiz Barbosa. Nascia, então, em 1933, Adoniran Barbosa. Além de cantor intérprete ele foi, ao longo da vida, compositor radialista, comediante, artista de circo e ator. No rádio fez fama com seu personagem Charutinho.
No cinema participou de filmes como Candinho, de Mazzaropi e O Cangaceiro, de Lima Barreto. Na televisão atuou das primeiras telenovelas da TV Tupi, como A pensão de D. Isaura.
Mas sua carreira foi conturbada, o sucesso demorou a chegar e ele viveu sucessivos períodos de ostracismo. Adoniran obteve sucesso somente a partir de 1951, com a composição de Saudosa Maloca, e só foi reverenciado como compositor a partir de 1973, quando gravou seu primeiro disco. A situação em nada indicava que ele viria a se tornar um dos principais nomes da musica brasileira.
Adoniran criou um estilo próprio, plenamente expresso em suas músicas. Ele combinava com maestria drama e humor, ironia e conformismo colocando em palavras sentimentos comuns, corriqueiros, poetizando fatos aparentemente desprovidos de poesia. Suas músicas eram ao mesmo tempo tristes, engraçadas, lúdicas e realistas.
Na contramão do discurso pomposo das elites e das camadas que almejavam se inserir na alta sociedade ostentando uma linguagem preciosa, Adoniran brincou com o modo de falar do povo paulistano, exagerando o sotaque interiorano, a influência italiana e negligenciando o plural e as concordâncias verbais. Cantou tragédias do cotidiano, lamúrias de moradores que eram engolidos pelas construções de arranha-céus. Definiu tipos urbanos: os despejados das favelas, os engraxates, a mulher submissa que se revolta e abandona a casa, o homem solitário. Adoniran criou o que no teatro se chamaria de clown do paulistano, uma auto-imagem exagerada: o homem talhado pelo trabalho com as máquinas, com seus horizontes estreitos, recortados pelas edificações, habituado ao ritmo das construções e dos veículos que circulam pela cidade, um homem melancólico, pragmático, contido e com senso de humor singular.
Essa percepção aguçada se fartava da cidade se expandia sob suas vistas. Durante a vida de Adoniran São Paulo explodiu em tamanho: de pouco mais de 130 km² em 1930, passou a 900 km² em 1980. A população, entre 1940 a 1980 passou dos 1,3 milhão de habitantes para 13 milhões. Poeta e cidade cresceriam e testemunhavam o crescimento vertiginoso da metrópole.
Embora sua obra esteja intrínseca à cidade de São Paulo e em uma determinada época, ela não se restringe aos habitantes desta cidade. Ao contrário disso, justamente por ser tão específica possui em si uma lógica que pode ser identificada e sentida em qualquer parte. Seu regionalismo compõe o mosaico do universal, por expressar situações concretas. A música de Adoniran elevou sua cidade ao cenário do samba, no coração do povo, com a marca forte do trabalhador.
Texto em português do Brasil
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