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Sábado, Julho 27, 2024

Adoro o cheiro de casa

Vitor Burity da Silva
Vitor Burity da Silva
Professor Doutor Catedrático, Ph.D em Filosofia das Ciências Políticas Pós-Doutorado em Filosofia, Sociologia e Literatura (UR) Pós-Doutorado em Ciências da Educação e Psicologia (PT) Investigador - Universidade de Évora Membro associação portuguesa de Filosofia Membro da associação portuguesa de Escritores

… África sempre sempre foi assim, apaixonado pelos coloridos infinitos, verde, azul, amarelo, vermelho e a bandeira do Benfica içada sobre uma janela e ao lado dela um rosto de menino negro…

Pela manhã, seguia a rua antiga que dá para as traseiras da minha casa, recordo-me de Francisca, a menina de uma tarde e dela nada mais sei, lembro-me apenas de me ter abordado quando por acaso nos cruzámos uma vez e ela me dirigiu a palavra com um olá calorosamente distante apenas porque não nos conhecíamos, seguindo entretanto cada um o seu caminho. Recordo-me perfeitamente bem do seu rosto, garanto, nem que seja num pensamento guardado na algibeira do meu silêncio, ou nos postigos da minha casa onde, sabe-se lá, imaginara um dia encontra-la, sentada no quintal esperando-me de braços abertos, de sorriso estampado, vestida como uma noiva e a dançar entretanto, o quintal que é enorme suportará todo o seu elenco, cheio de visitantes que com ela partilhem todos os desígnios do sonho daquele fortuito encontro numa rua de Luanda, os seus olhos sem se perderem estendem-se pela varanda e pela longitude do vazio, a sua voz ecoando o arvoredo das ruas, das estradas, dos quintais, gritava, diria, cantava, como uma estrela de São Paulo e a banda por trás, segue as notas breves desta melodia cansada pela felicidade dos anjos perdidos nas trevas da cidade acordada, e eu, imaginando-me um salvador como uma auréola sobre a cabeça entrando enquanto a ouvia, seguia o som das suas deliciosas cantatas, desci as escadas até conseguir vê-la de frente, o som estereofónico da cidade ali alojado, ninguém usurpa de mim esta verdade, mesmo que nem sequer a seja, os meus olhos colados ao céu, meio acordado, acabado acordar. A mentira dói, faz rasgar o coração, a mentira, coisa feia, tiro fotos enquanto a banda segue e nesse instante uma voz por dentro, como que a chamar-me, sigo-a, deitado nas esponjosas deliciosas da morte, descansadamente a levar-me, o som estereofónico dos seus passos pela calçada, o riso oculto de quem não conhecemos, a voz obtusa que me espreita pelas grades coloridas dos andares, escorreita e deliciosa como crianças que me apelam um abraço, paro, absorvo o silêncio de gritos se os ouço, levadas pela suave brisa que percorre todos os cantos da cidade, os edifícios de várias cores aglutinados e distendidos pelo tempo, a precisarem de reparação, e conto quantas são as cores, imensas, mas gosto, o sangue de África sempre sempre foi assim, apaixonado pelos coloridos infinitos, verde, azul, amarelo, vermelho e a bandeira do Benfica içada sobre uma janela e ao lado dela um rosto de menino negro:

“viva o Benfica!”

Lia-se, meio descolorida, a frase, mas consegui mesmo assim percebê-la, o momento era bifurcado pelo trânsito especioso a cruzar-se pelas tardes repletas, pela enchente que vagueava, penetrando o escuro que nascia, pelas sombras que restavam, restará o horizonte escondido pelos montes verdes acomodados na sua origem, os relatos vão-se calando à medida do sono, irei certamente deitar-me para dormir, irei tentar descansar depois disto tudo, desta beleza acumulada por falésias e penhascos, este som de miramar, descendo em direcção ao café do Quintas para ver um jogo que não foi transmitido, e nesse dia o horizonte, pela manhã fresca após que sono longo ou nem isso, Francisca novamente, o seu delicado olá, de novo a minha simples resposta estranha, embora desta vez menos efusiva:

– Lembro-me de si.
– Sim, sim – respondeu ela.

É assim em Luanda. A simpatia que transborda nas bermas. Anónimas. Transeuntes, caminhadas, talvez pela solidão de anos, esta simpatia tem cor, cheiro, destino. As pessoas tocam-se como num filme de amor, um romantismo acutilante e lesto, o carácter desprovido envolve-nos, leva-nos ao seu refúgio, ao seu leito mais profundo, indo com o olhar, mas que me lembre, sempre assim foi, sempre entendi as coisas desta maneira, o espírito aberto albergar-nos nos seus mais sagrados aposentos. Nas suas famílias. Nossas.

A tarde cai sobre os espelhos negros do alcatrão como beijos divinos. Na folhagem dinâmica despindo-se sobre os solos. Sobre a relva das estepes. Nos lagos e charcos onde a água da chuva se aloja. Talvez sinta dentro de mim o coração falar mais alto, o sonho dos outros na minha mão, como num púlpito que divaga pelas sombras das almas dos que acreditam, com fé, realidade, embora nisso o sonho tenha papel importante, de quem se quer assim, o azul que desbrava todas as manhãs, lá, nas alturas do céu, como todas as verdades sobre este lento caminho chamado vida. A maturá-la.

Cresci na rua. Onde fogos dos santos populares me aqueciam. Espalhavam-se brasas que me reconfortavam com sardinhas bem quentes numa carcaça fria, o óleo fresco do peixe na fome, as mãos sujas de vontade enquanto deglutia, dentada a dentada, o peixe saboroso naquele frio descontente, enquanto crescia ali, sim, na verdade, crescemos um pouco todos os dias, sabemo-lo, não tenho sede de crescer mas quero viver, viver aqui, como se os pólos se unissem reforçando-me, sem ânsias e cheiro de vontade, caminhar sobre as lezírias do meu desejo, ainda que solitária esta caminhada, repleta de tantos nadas à minha volta, seguir pressupostos inventados a cada instante, quero e creio nisto, os dias de escola, o regresso a casa, o fim de tarde e a passagem repousada perante o meu olhar com uma felicidade estampada no rosto. Adoro o cheiro de casa. O silêncio do meu quarto. De repente, sentir-me envelhecido, crescido, cansado, à espera que o dia para sucumbir me bata à porta.

(excerto de: O VELHO DO RIO SEM NOME, de Victor Burity da Silva)

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