Habituados que estamos às frases bombásticas e tonitruantes com que diariamente nos mimoseiam a comunicação social e a sua vasta panóplia de comentadores e fazedores de opinião, temos tido toda a atenção focada na situação de conflito na Ucrânia e na subida do preço dos combustíveis, mesmo agora quando o seu preço de referência registou uma grande queda, quase esquecendo a muito menos falada crise alimentar que ameaça agravar ainda mais as já muito precárias condições de vida dos mais desfavorecidos.
É que embora raramente referido, é o alto custo dos fertilizantes que está a forçar a manutenção do custo dos alimentos perigosamente elevado, demonstrando a quase inutilidade das medidas debatidas na última reunião do G20 para conter o custo dos alimentos e dos fertilizantes e a ameaçar agravar a situação de fome que já se vive em muitas zonas do planeta,
Segundo o Banco Africano de Desenvolvimento, este continente, onde os pequenos agricultores alimentam a maioria das pessoas, necessita de 2 milhões de toneladas de fertilizantes e o actual nível de preços, com o do trigo a subir mais de 45% e o dos fertilizantes mais de 300%, significará menos comida, precisamente quando as pessoas mais precisam, com crises mais frequentes de clima extremo e a guerra na Ucrânia a deixar mais inseguros os países dependentes da sua importação. Os agricultores na Europa estão a sentir tensões semelhantes, embora em menor grau, com o impacto da guerra nos mercados agrícolas, que já levaram a um aumento de 30% nos preços, a representarem uma grande ameaça à segurança alimentar.
A guerra na Ucrânia está a agravar o problema devido ao enorme peso da Rússia (o maior exportador mundial de fertilizantes nitrogenados, o segundo maior fornecedor de potássio e o terceiro maior exportador de fertilizantes fosfatados) no mercado mundial de fertilizantes e, a manter-se a redução das importações de gás natural da Rússia, os produtores europeus de fertilizantes já alertaram para a sua escassez.
Os fertilizantes industriais são produzidos a partir de três ingredientes principais: nitrogénio, fósforo ou potássio e a sua produção requer um uso intensivo de energia, especialmente para os fertilizantes à base de nitrogénio, que, por utilizarem o gás natural como ingrediente essencial, implica que o seu preço tenda a corresponder aos custos de energia.
Depois da invasão da Ucrânia em Fevereiro, com os custos de transporte e os preços da energia a subirem, são agora os produtores de fertilizantes da Europa que alertam para a sua escassez se as importações de gás natural da Rússia continuarem a cair. E as sanções económicas aplicadas pela UE a Moscovo não ajudam, pois embora se insista que as sanções não limitam as exportações da Rússia para outros destinos, a inibição desta no acesso ao sistema de pagamentos internacionais SWIFT e o aumento acentuado dos prémios de seguro para a navegação, prejudicaram ainda mais o comércio de fertilizantes.
Tal como sucede com o gás natural, a Rússia está a impor quotas às exportações de fertilizantes (pelo menos até ao final do ano), sob o argumento que se trata de uma medida para proteger os seus próprios agricultores, enquanto pressiona para alargar o acordo de exportação dos cereais ucranianos à sua própria produção cerealífera e fertilizantes, mesmo quando alguns países, como o Brasil, continuam a receber produtos agro-químicos daquela origem.
As consequências da agressão militar da Rússia contra a Ucrânia continuam a ter impacto nos mercados globais de commodities e representam uma real ameaça à segurança alimentar, o que juntamente com a alteração das condições climáticas na UE estão a justificar as previsões de quebra nas novas colheitas e a alimentar as pressões especulativas sobre os preços.
A subida dos preços dos fertilizantes também está a perturbar o sempre delicado equilíbrio entre uma remuneração adequada da produção agrícola e a garantia de preços acessíveis dos bens alimentares; assim, se os preços dos fertilizantes continuarem a subir devido aos altos custos de energia, os produtores cerealíferos sentirão dificuldades acrescidas para cobrir os seus custos, com imediato reflexo nos preços dos alimentos, na espiral inflacionista nas economias ocidentais e na extensão da crise da fome nas regiões mais vulneráveis do planeta.
Em economias abertas e profundamente interdependentes qualquer perturbação nas cadeias produtiva e distributiva será rapidamente repercutida e de tal forma generalizada que os seus efeitos podem facilmente converter-se em avassaladoras e incontroláveis situações de agitação social. Este cenário extremo, que ninguém de boa fé e com um mínimo de conhecimentos poderia simplesmente excluir, deveria ter estado entre as principais preocupações de estrategas e conselheiros políticos dos decisores a quem entregámos a condução dos nossos destinos e que teoricamente deveriam zelar pelas populações que dirigem, colocando a salvaguarda do interesse-geral acima de todos os outros.
Por cegueira, incúria ou pura e simples estupidez ideológica, optaram por fomentar as divergências em vez de procurar consensos e negociações equilibradas e agora, com o edifício já em chamas, alimentam a tempestade que nos cerca com a insistência no recurso a novas sansões económicas, parecendo permanecer insensíveis a uma realidade que nos pode devorar.