Ser advogado em Marrocos não é fácil, não devido à dificuldade do curso, nem de encontrar clientes, é difícil porque a justiça, a lei no papel não é a aplicada na sala do tribunal.Defender presos políticos saharauis é algo que nenhum advogado anseia em Marrocos, onde o código penal mantém a prisão como uma penalidade por uma variedade de ofensas de expressão não violentas implementadas por muitos anos, como cruzar as “linhas vermelhas” de Marrocos: entre elas “atacar” o Islão, a monarquia, a pessoa do rei e a família real, e “incitar contra a integridade territorial de Marrocos”, uma referência à soberania que Marrocos defende ter sobre o Sahara Ocidental. Incitar pode ser algo tão simples como dizer publicamente Sahara Ocidental em vez da terminologia imposta pelo estado “províncias do sul” ou “Sahara Marroquino”.
Os advogados que têm a coragem de o fazer sofrem ameaças, insultos e problemas de toda a ordem, sobretudo se vivem nos territórios ocupados do Sahara Ocidental e são Saharauis, é esse o caso de Bachir Rguibi Lahbib, Mohamed Boukhaled, Bazaid Lehmad e Mohamed Fadel Lili.
Há alguns anos a esta parte os presos políticos saharauis são transferidos dos territórios ocupados para prisões no interior do reino de Marrocos uma clara violação do Artigo 76 da 4.ª Convenção de Genebra. Esta nova realidade obriga os advogados a percorrer centenas de km para poder ver os seus clientes na prisão ou defende-los em tribunal, num país onde os julgamentos chegam a ser adiados consecutivamente e onde os saharauis não têm meios para pagar aos seus advogados tudo são obstáculos acrescidos.
Nas dezenas de sessões de julgamento a que assisti fui testemunha directa da coragem destes homens, que apesar de todos os perigos que enfrentam continuam a defender aqueles que sem terem cometido outro crime que não fosse o de defender de forma pacifica o direito do seu povo à autodeterminação são vitimas de detenção arbitrária, torturas e sentenças que chegam à prisão perpetua.
Mohamed Fadel Leili
Um destes advogados é o Dr. Mohamed Fadel Leili, ex-preso político, sequestrado durante 16 anos em prisões secretas onde sofreu torturas inimagináveis. O Dr. Leili licenciou-se em Direito após a sua libertação e anos mais tarde fez o doutoramento em Direito Internacional, especializado em conflitos de fronteiras em África ante o Tribunal Internacional de Haya.
Conhece bem o sistema judicial marroquino por dentro das prisões e nas instâncias judiciais.
É usual que tenha todas as provas necessárias para provar a inocência dos seus clientes, mas estas nunca são tomadas em consideração, na maioria dos casos nem sequer são admitidas.
As acusações são sempre desproporcionadas com sentenças longas e largos tempos de espera entre a detenção e o primeiro julgamento.
A tortura acompanha a detenção, e prolonga-se muitas vezes após a sentença, uma metodologia que Marrocos pensa intimidar a população saharaui, mas que apenas serve para que o sentimento de revolta perante a injustiça aumente e a frustração com a comunidade internacional que não é capaz de aplicar as resoluções das Nações Unidas na última colónia de África.
Este é o seu relato sobre os dezasseis anos de desaparecimento forçado dado numa entrevista de Blanca Enfedaque de La Marea e publicado em Janeiro de 2015.
Minha família vivia em Tan Tan, mas o meu irmão e eu tínhamos ido para Kenitra, para estudar no liceu, porque em Tan Tan estávamos recebendo ameaças. O meu tio morava em Kenitra e, embora estivéssemos internos, nos fins-de-semana podíamos visitá-lo. Porém, em Janeiro de 1976, prenderam o meu irmão, numa vaga de desaparecimentos forçados contra os saharauis. Meu pai, minha mãe, meu tio e minha tia desapareceram a 27 de Fevereiro de 76. Eu tinha 16 anos e, embora não soubesse da minha família, tinha recebido informações que garantiam que eles estavam na delegacia da polícia de Agadir”
Fadel Leili foi levado para a prisão (então secreta) de Derb Moulay Cherif, juntamente com opositores ao regime e presos políticos. Desse lugar lembra a roupa que o obrigaram a vestir, cheia de pulgas e muito maior do que ele, de tal modo que tinha que andar sempre a segurar as calças compridas com as mãos. Nesse lugar também perdeu o seu nome, mudaram-no para 79 ou 97, não se lembra bem.
Os guardas também eram desumanizados, não se sabia o seu nome, havia que chamar a todos “El Hash”, Chefe, sempre que era necessário. Em Derb Moulay Cherif provou o sabor da tortura, longas sessões em que é interrogado sobre a Frente Polisario. Procuram sacar informação sobre a sua estrutura dirigente, perguntam-lhe por El Ouli Mustafa Sayed e por outros dirigentes do Movimento de Libertação, entre eles, outro dos seus irmãos: Mohamed Lamin Ahmed. “Claro que os recordava! Vinham à minha casa, mas eu não passava de uma criança sem ideias políticas”, rememora.
O seu destino seguinte foi a prisão secreta de Agdez, para onde iam parar a maioria dos saharauis com estudos superiores ou, como ele, que ainda estavam no Liceu. Detêm gente de forma aleatória, não pela sua relação entre si, mas gente que podia construir um movimento de resistência à invasão. Recorda o dia da mudança de prisão como se fosse hoje. “Oitocentos quilómetros em furgoneta, sob um sol abrasador de Julho de 1976. Éramos dez jovens, algemados e vendados. Vim um vislumbre de humanidade num dos guardas que transgrediu a proibição de dar-nos de comer ou de beber quando nos deu um trago de água às escondidas. Receberam-nos com torturas e registaram-nos. Então teve primeira surpresa. “Enquanto me registavam li em francês que no registo de saídas só havia mortos. É então que compreendo que estamos ali para morrer”. Como afirma o médico e psicólogo forense Carlos Beristain, “os processos repressivos são muito burocráticos”. Há sempre abundante documentação que testemunha a quantidade e qualidade de danos infligidos ao inimigo.
É em Agdez onde consegue ver por uma frincha da cela passar a sua irmã, a sua mãe e a sua tia, e mais tarde o seu pai. “Senti alívio por não estar só, necessitava da família”.
Celas de 5 ou 6 metros quadrados para dez pessoas. Habitáculos vazios com um solo irregular donde irrompem grandes pedras. Mantas do tamanho de um guardanapo grande para passarem as frias noites do deserto. Pratos oxidados que contêm água quente com uma gota de azeite, em que flutua a ferrugem ou um bocado de cenoura tão grande como uma ponta de um dedo. Pela tarde, uma papa de cereais que fica negra em contacto com o óxido. A anemia instala-se nos corpos dos presos. “Perdiam a capacidade de andar, tinham os músculos enfraquecidos. Os dentes caiam e as gengivas estavam em carne viva, houve muitos mortos por desnutrição. Então optaram por nos dar quatro ou cinco tâmaras por dia. Mas nós dávamos-las aos doentes”. “Um dia deram-nos arroz, mas um velho reparou que junto com o arroz havia também pequenas agulhas e deu a voz de alarme. A alegria converteu-se em pesadelo”.
A morte sobrevoa Agdez. Os guardas permitem-lhes realizar o rito muçulmano com os cadáveres dos companheiros. Lavam-nos, envolvem-nos com lençóis brancos e rezam pelas suas almas. Cada vez que os guardas levam um corpo voltam a entregar-nos os lençóis e dizem “estes são para vocês”. Cada vez que um preso morre torturam outro para desviar a atenção dos vivos. A urgência do sofrimento fá-los esquecer aquele que já se foi. “Os guardas quebram a coluna vertebral dos cadáveres e deitam ácido nas suas caras para que não possam ser reconhecidos se alguém vier a descobrir a fossa”.
Qual era o plano das autoridades marroquinas? “Os guardas contam-nos que ao princípio veio o governador da zona, Ouarzazate, e deu ordens para que os presos morressem lentamente, fossem enterrados os corpos e que fossem castigados duramente as sentinelas que ajudem os saharauis”.
Os guardas não tinham sido treinados (numa referência à formação em torturas que a CIA promoveu). Os guardas de Agdez dão espancamentos sem controlo, sem técnica, com paus com picos, com folhas grandes de palmeira, com garrafas de vidro… São dois ou doze guardas ao mesmo tempo”.
Apesar de tudo isso, Mohamed Fadel Leili e a sua família sobrevivem para conhecer mais uma prisão: Kalaat M’Gouna. “A noite mais dura da minha vida”, descreve rotundo, sem hesitação. É o mês de Outubro do ano de 1980. Na caixa de cada camião vão atadas 25 pessoas, todos com o mesmo rolo de corda, para que a cada movimento ou estremeção aperte mais os nós dos outros. “Os militares passam por cima de nós, agridem-nos com a culatra das espingardas na cabeça e nos joelhos. Ao chegarmos cortam a corda e atiram-nos de bruços do camião para o chão. Um companheiro morre de hemorragia interna. Em Kalaat M’Gouna, as pequenas melhorias que tínhamos conseguido em Agdez desvanecem-se”.
E a família? Também tinham sido trasladados para ali, são-lhes dados dez minutos por semana para se encontrarem. Normalmente, nas celas permanecem atados de mãos e pés quatro pessoas. Um novo membro do clã chega à prisão, seu irmão mais novo, detido em 1983. “Um guarda um dia diz à minha mãe que tem um presente para ela, e leva-a a encontrar-se com esse filho, a caminho da sala de tortura. Adverte-a com um sorriso que ele enlouqueceu”. Estão juntos numa sala cheia de soldados. O filho não conhece a sua mãe, mas após uns momentos em que ela lembra-lhe recordações de infância, ele melhora, sorri, liga à realidade. Quando os guardas reparam, levam-no.
E assim sobreviveu a sua família, até à sua libertação.
Em 1991 Marrocos liberta 300 presos saharauis, entre eles Mohammed e a sua família. Levam-nos para El Aaiún onde chegam ao meio-dia. Durante a noite falece o seu pai, após 16 anos em prisões.
Aqui termina o parêntesis, mas não acaba a dor. Com 32 anos regressa ao Liceu, compartilhando as carteiras com jovens de 16 anos. Depois de passar por muitas penúrias económicas, consegue aceder à Universidade de Marraquexe.
Entretanto, o seu irmão mais novo, que havia melhorado psicologicamente graças a um tratamento médico, desaparece. A família empreende a sua busca pelas delegacias da polícia, pelos hospitais… Até que Mohammed chega à morgue. Dizem-me que só há um corpo, que é de um marinheiro chamado Omar. Mas eu quero vê-lo, é o meu irmão. Afirmam que morreu afogado quando fazia natação. Que se despira, deixou o seu relógio nas sapatilhas e depois o mar devolveu-o juntamente com a roupa. A sua camisa denunciava marcas de pintura, uma sandália estava rota, tinha sinais de estrangulamento…”
Em 1996 licenciou-se e em 97 passou no seu exame de acesso à advocacia. Em 2003 obtém o título de mestrado em Direito Internacional, e posteriormente doutora-se nesse âmbito, especializando-se em conflitos de fronteiras em África ante o Tribunal Internacional de La Haya. “Hoje prossigo com a minha promessa de defender os saharauis que sofrem torturas. Faço parte de uma equipa de advogados que trabalha de forma voluntária”.
O papel de Mohammed Fadel Leili, e dos seus três companheiros, é considerado como determinante pelos membros das associações saharauis de Direitos Humanos. Em 2011 receberam o prémio da Fundación Abogados de Atocha, um prémio que o Consejo General de la Abogacía Española se comprometeu a impulsionar através de um convénio subscrito no passado mês de maio.
Ninguém melhor do que esta equipa de quatro advogados saharauis, três dos quais foram vítimas de desaparecimentos forçados e tortura, pode entender o sofrimento das pessoas que defendem. “Não gostamos nada do sistema jurídico, mas temos a obrigação de controlar todas as suas facetas. Sofremos quando vemos injustiças pelo único motivo dos acusados serem saharauis. Os juízes marroquinos cometem um delito quando alteram o direito que se deveria aplicar aqui. A nossa experiência como equipa de advogados é importante, usá-la-emos quando desenharmos o nosso próprio sistema. Quando o Sahara for livre”.