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Quarta-feira, Abril 2, 2025

Afinal há dinheiro

Arnaldo Xarim
Arnaldo Xarim
Economista

Depois de mais de uma década a ouvir dizer que era imperioso aplicar políticas de austeridade para reduzir as dívidas e que os estados da UE não podiam continuar a acumular sucessivos défices orçamentais, eis que o “medo dos russos” operou milagres e afinal o que não vai faltar é dinheiro para os europeus se armarem.

Para os saudosistas da década de 50 do século passado, do “medo dos vermelhos” e do terror do macarthismo, eis que o simples agitar do “medo dos russos” vem resolver todos os problemas da UE. É que além dos nos prepararmos para a garantida invasão dos russos, vamos ainda resolver o crónico problema do atraso tecnológico e, cereja no topo do bolo, vamos resolver a crise do sector automóvel com a conversão das fábricas em vias de encerrar e a rápida reconversão da mão-de-obra assim disponibilizada.

Não fosse tudo isto demasiado sério e até me apetecia recuperar aqui uma piada dos anos 70 do século passado, quando os Parodiantes de Lisboa faziam humor sobre a conversão de uma unidade de montagem de automóveis, cujo eminente encerramento se pretendia então resolver passando a fabricar frigoríficos e onde um personagem se interrogava como seria um frigorífico com uma caixa de velocidades?

Ignoro se iremos passar a ter VW equipados com canhões sem recuo ou BMW voadores, mas tenho a certeza que pouco tardará para ouvirmos retomar os discursos da austeridade e voltarmos a sofrer na pele a dura necessidade de cortar pensões e serviços médicos e educacionais…

Retomando a mais pura lógica neoliberal, a UE, tal como o fez recentemente a propósito da urgência no desenvolvimento e produção de vacinas contra a Covid-19, prepara-se para entregar todo o tipo de apoios e subvenções a uma iniciativa privada que acumulará lucros e ganhos com a súbita febre da produção de armamento, para depois nos apresentar, compungida e pesarosa, a factura de mais uma encomenda espúria.

Apesar da frequência com que ouvimos alertas para o perigo de decisões sob a pressão da urgência, eis que agora se esquece essa mesma prudência e perante uma aparente inversão da posição norte-americana relativamente ao conflito na Ucrânia, Bruxelas anunciou de imediato um ambicioso plano de investimento de 800 mil milhões de euros para o rearmamento da UE.

Seja qual for a engenharia financeira que os originará (a proposta de Ursula Von der Leyen é de aumentar a despesa em armamento dos estados-membros até aos 650 mil milhões de euros a que acresce um empréstimo conjunto de 150 mil milhões de euros), a inegável realidade é que há uns anos foi impossível unir esforços para juntar umas poucas centenas de milhares de milhões de euros para defender a moeda única e evitar o flagelo da austeridade que campeou pela Europa do Sul. Na altura os denominados países frugais (estados da Europa do Norte capitaneados pela irredutível Alemanha) até queriam impor nas constituições dos outros estados a chamada regra de ouro que impedia a existência de déficits públicos, mas agora são os dirigentes da própria união a propor o fim dos limites ao déficit e a não contabilização destas novas despesas para o cálculo da dívida e a Alemanha a alterar a sua constituição para permitir o rearmamento.

A mudança de política pelos EUA está a servir para fomentar um clima de medo na UE e ao invés de um muito necessário debate sobre as estratégias a adoptar em resposta, lança-se um absurdo monte de dinheiro sobre um problema que poderá nem sequer ser real. Na ausência de qualquer avaliação sobre o tipo de exército único a construir – algo que há muito tempo deveria estar feito – ou o tipo de armamento necessário, a senhora Von der Leyen lança um programa de rearmamento esquecendo (como muito bem aqui o lembrou Carlos Matos Gomes) que a Europa «…está na cauda do desenvolvimento tecnológico — está 10 a 20 anos atrasada relativamente aos Estados Unidos, à Rússia e à China, não domina as tecnologias do aeroespacial, nunca colocou um satélite na Lua! Não dispõe de um sistema de geolocalização do tipo GPS, ou do sistema russo (glonass) ou chinês, indispensáveis à condução dos sistemas de armas, sem os quais, aviões, tanques, navios, até combatentes estão cegos no campo de batalha. A Europa não domina as tecnologias de decepção e mistificação que permitem a luta de drones. A Europa está na cauda da utilização militar da Inteligência Artificial. Os mais poderosos computadores (quânticos) são chineses e americanos! A Europa não dispõe de um sistema de partilha de informação do tipo da internet. Está na cauda da utilização de computação quântica que dentro de dez anos dominará os sistemas de armas e de comando e controlo.transferir as informações geradas nas redes europeias para os arquivos de dados nos Estados Unidos e à disposição das suas agências!»

Ou será que tudo não passa de um processo para salvar a indústria automóvel alemã, como anteriormente se condenou a Grécia à miséria para salvar os bancos alemães e franceses?

Sinal dos enormes interesses envolvidos nesta questão é a anunciada intenção do Banco Europeu de Investimento aliviar regras para apoiar o rearmamento da UE; menos claros são os anunciados benefícios para a economia europeia que atravessa graves crises de inovação e desenvolvimento, isto para não falar que o acumular de stocks de armamento apenas pode resultar no agravar de tensões e no aumento da probabilidade de conflitos (única forma de gastar as armas e as munições fabricadas e assegurar a necessidade de mais e maiores compras). Será isto que as populações europeias verdadeiramente querem?

Se do ponto de vista estritamente económico se associa muitas vezes a política de rearmamento a períodos de crescimento económico – o investimento e a criação de empregos gera um natural aumento do consumo interno – não é menos verdade que se trata de uma realidade transitória e de curta duração onde o verdadeiro crescimento resulta da necessidade de reconstruir tudo o que a guerra inevitavelmente destrói, ou como muito bem sintetizou recentemente o ex-ministro das finanças grego, Yanis Varoufakis, «Em vez de investir na vida, está a investir na morte. De um ponto de vista macroeconómico e realista, isto não vai gerar crescimento onde ele é necessário. Quando se compram munições, quando se compram cartuchos e os colocamos numa prateleira. Isso não é um investimento produtivo».

Enquanto tudo isto, o Parlamento Europeu é mantido afastado, a Comissão Europeia anuncia grandes planos de rearmamento e, numa espécie de crise de histeria, lança uma campanha para que as populações se equipem com kits de emergência para situações de crise.

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