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Sábado, Novembro 2, 2024

Afinal o que que ficou no Éden?

Yvette Centeno
Yvette Centeno
Licenciou-se em Filologia Germânica, e e doutorou-se com uma tese sobre A alquimia no Fausto de Goethe. É desde 1983 Professora Catedrática da Universidade Nova de Lisboa, onde fundou o Gabinete de Estudos de Simbologia, actualmente integrado no Centro de Estudos do Imaginário Literário.

Um inédito, com que fecho os Sintomas II, enquanto o meu word aguenta…

Conclui afinal o que ficara por dizer no ensaio do dizer o mal, mais antigo, mas era conferência na UNL e precisava de ponto final.

Sintomas II

inédito

Acordei cedo e com uma interrogação sobre o Jardim do Éden, depois de Jeová ter expulsado Adão e Eva, as suas criaturas primordiais, o casal que daria origem a toda a espécie humana. Expulsos e proibidos de regressar pelo Arcanjo da espada flamejante que guardou, até hoje, o portão da vida eterna, Adão e Eva foram à sua vida, isto é, puseram-se a caminho, e o caminho deu por sua vez origem ao que chamamos terra: as grutas, as florestas, os campos com as terras férteis ou amaldiçoadas, conforme, e as cidades de que Cain, o filho primogénito, foi o construtor. Também aqui houve um momento de expulsão. Adão e Eva tinham concebido dois filhos Cain e Abel. Jeová apreciava mais a ingénua fé e os as oferendas que Abel lhe levava. Cain, ciumento, matou o seu irmão e justificou o seu acto como vingança pela injustiça da relação privilegiada com Jeová. Sendo o mais velho não mereceria mais respeito?

Jeová era um deus cruel e vingativo. Tinha prazer em castigar. Já castigara os pais, castigava agora um dos filhos, Cain, o invejoso das bençãos dadas a outros. Ele partiu e o seu caminho foi feito de avanços na progressão do que hoje se chamaria civilização. Porque a cidade representa um grande avanço no ordenamento dos espaços, dos territórios, (suas normas, seus rituais) cuja finalidade era aprender a cumprir os deveres para com os deuses. Isto também aborreceu Jeová, que queria ser o único a decidir do destino da espécie. E quantas vezes, de raiva, destruiu o que fora de início impulso de generosa vontade de criar e contemplar feliz o que tinha sido criado, pelo seu Verbo inflamado e poderoso.

The Garden of Eden, de Jan the Elder Brueghel (1568-1625)

Mas volto à questão do Jardim do Éden: o que lhe aconteceu? Jeová passeava solitário entre as árvores? Talvez entregues à jardinagem cuidadosa de algum Anjo? Ou já todas as que eram pomares de sedução e alimento estariam abandonadas ao acaso?E não esqueçamos a serpente, que não chegou a ser expulsa, o seu corpo rastejava por ali, com o seu veneno entranhando outros seres, e entre eles um Anjo, o que viria a revoltar-se contra Deus, já que de Adão e Eva ela tinha perdido o rasto, até ao episódio de Cain. No Génesis I, podemos ler a Criação e a Queda. Já tratei algures o DIZER O MAL, procurando entender a sua génese. Mas hoje é do Jardim Perfeito que me quero ocupar. Com muitas árvores de fruto, Adão e Eva nunca teriam fome. Mas alguma coisa faltava e foi a Serpente que lhes explicou o que faltava e seria de tão fácil acesso (não mencionou o preço a pagar). Faltava o conhecimento. Ali estavam os dois, puros na sua inocência do corpo e da alma, e Jeová só vinha controlar se havia obediência….ou curiosidade de experimentação, conhecimento e ciência (algo que a Serpente parecia possuir em abundância, como se também fosse, parcialmente, divina).A tentação de saber, e saber mais, afectou Eva de forma irremediável. Obedeceu ao seu instinto serpentino (tão próprio das mulheres, desde os rituais mais antigos praticados e representados em tantos mitos de fundação, desde os Assírios aos Gregos e ainda hoje nas tribus não conhecidas). Colheu o fruto da árvore proibida e logo Jeová acorreu, a salvar a outra, que era sua e lhe garantia toda a perenidade. Furioso, de seguida os chamou e castigou, a esse par que ousara desobedecer às ordens dadas.Jeová Deus ficou com uma das árvores, a da Vida Eterna, mas a Serpente ficou  enrolada na outra, a do Conhecimento, e que eu saiba até hoje  não foi expulsa, embora ameaçada de um dia ter a cabeça esmagada por uma Virgem pura. Mas morderia primeiro o calcanhar da linhagem do homem, pois ele e Eva iriam agora, já expulsos, procriar.Sabemos que diante do Jardim do Éden deus colocou “os querubins” (os seus Anjos),  e a chama do gládio fulgurante para vedar o acesso à Árvore da Vida. Volto a pensar no que se passaria no interior de um Jardim, outrora tão perfeito e agora tão amaldiçoado. Jeová vivia e mandava. Mas a Serpente vivia, como ele. E astuta (podia Jeová ser menos inteligente do que ela, ele que fora seu criador?) ela simplesmente aguardava o seu momento. E assim avançava, enquanto rastejava, e ia sendo seu todo o Conhecimento. O pouco e o muito que hoje temos.

Que distracção a minha, imperdoável… no meio do Jardim ficou um resto da maçã trincada por Eva e por Adão, com o caroço à vista, apodrecendo…

Adão e Eva, de Lucas Cranach, o Velho

 


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