1. Uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos (ILC) — um dos meios da “Democracia participativa”, que visa assegurar a abertura parlamentar a anseios da população — apenas pode ser exercida, segundo a lei vigente, através da subscrição em papel; em número mínimo de 35.000 assinaturas; acrescidas ainda da indicação, por signatário, do número de cartão de cidadão eleitor e do nome da freguesia. Ora, a Democracia participativa é corolário directo do Estado de Direito democrático, como resulta do art. 2º da Constituição (e Preâmbulo), e faz parte do direito fundamental de “tomar parte (…) na direcção dos assuntos públicos do País, directamente ou por intermédio” dos Deputados da Assembleia da República (AR) (art. 48º, nº 1).
Devido aos excessivos requisitos exigidos, hoje desajustados da realidade informática, as ILC, têm tido pouca aplicação prática: em 13 anos de vigência da Lei nº 17/2003, apenas cinco Iniciativas Legislativas de Cidadãos foram apresentadas – o que dá uma média de 0,38 ILC por ano…
Frise-se que estas iniciativas, oriundas dos cidadãos, nunca são vinculativas para o Parlamento: a AR tem de as admitir; apreciar; de as discutir e votar.
2. “com a universalização do voto garantida, e porque a democracia não é uma realidade estática”, mas antes “um processo em constante movimento”, torna-se imperioso que o Legislador ordinário aprofunde o regime democrático, seguindo os ditames do Legislador constitucional de 1997. “É importante (…) que cada nova conquista saia do papel; caso contrário”, estar-se-ia “a pôr em causa as legítimas expectativas dos cidadãos justamente fundadas na sua lei fundamental” [1].
Estamos na era da globalização, da internet e das interacções electrónicas. A internet é instrumento proeminente para promover as relações sociais. Os serviços da internet cresceram e chegam, cada vez mais, a um maior número de pessoas. A internet oferece aos cidadãos um novo espaço para a participação democrática.
As vantagens são muitas: os custos são muito reduzidos; desonera-se os cidadãos de terem de enviar folhas de papel, de recolher assinaturas presenciais e de as contabilizar, impondo uma logística que não está ao alcance de quaisquer grupos de cidadãos; o processo de contagem das assinaturas torna-se muito mais rápido; o grau de participação cívica pode certamente aumentar.
Hoje, aliás, já é possível subscrever petições on line, através da inserção do nome completo e do número de Bilhete de Identidade ou Cartão de Cidadão. Falta actualizar e uniformizar o regime, em conformidade, também para outras iniciativas de cidadania, como as ILC e as Iniciativas de Referendo.
3. No intuito de adequar a regulamentação à modernidade informática e a fim de suprimir formalidades desnecessárias e, complementarmente, reduzir o número de assinaturas exigidas para as ILC, os signatários do presente artigo, juntamente com Manuel Alegre e António-Pedro Vasconcelos, foram proponentes de uma Petição à AR, que deu entrada no final de 2015.
Como aí se defendeu, a mudança dos regimes legais das ILC e das Iniciativas de Referendo coincide com o espírito do Programa do actual Governo, que preceitua: “1. Melhorar a qualidade da democracia – Existe, hoje, na sociedade portuguesa, uma quebra de confiança dos cidadãos relativamente à política, às instituições democráticas e aos seus responsáveis. Reconhecendo a necessidade e a urgência de inverter esta, o Governo actuará em (…) áreas-chave: (…) na valorização de mecanismos já existentes(…)”.
Por seu turno, o Programa eleitoral da Coligação “Portugal à Frente” (PSD/CDS) preconizou: “A revisão dos regimes de referendos e de iniciativa legislativa popular: nomeadamente promovendo a simplificação dos procedimentos e dos requisitos exigidos para a iniciativa popular de referendo nacional e para a iniciativa legislativa por cidadãos”.
E o “Manifesto eleitoral” do Bloco de Esquerda às eleições de 2015 preceituou: “Ampliar o acesso dos cidadãos à decisão política, nomeadamente reduzindo-se o número de subscritores necessários para a proposta de uma iniciativa legislativa popular”.
4. Aquando da discussão da Petição em Plenário, em 6 de Maio último, foram apresentados seis Projectos de lei, por parte de todos os Grupos parlamentares; um Projecto de Deliberação (por parte do CDS); e ainda um Projecto de lei do PSD, relativo à Lei Orgânica do Referendo Nacional, que, hoje, impõe a exigência de 75.000 assinaturas presenciais em papel [2].
Todos esses textos baixaram à 1ª Comissão “sem votação”, por um prazo regimental de 30 dias, a contar de 13 de Maio.
No essencial, os Projectos prevêem a informatização das assinaturas, a redução do seu número e a supressão das formalidades do n.º de Cartão de Cidadão Eleitor e do nome da Freguesia. E, como suscitado nas audições parlamentares com os peticionantes, abre-se a possibilidade de a AR alojar, em espaço próprio no seu portal, o registo e a adesão e assinatura quanto às iniciativas de cidadãos, à semelhança das instituições europeias – uma inovação relevante e facilitadora, embora pensemos que não deva ser imposta como modo exclusivo de organização, devendo ser admitidos Portais privados, credenciados pela Comissão Nacional de Protecção de Dados e reconhecidos pela AR.
5. Porém, sucede que a matéria está ainda para ser apreciada na 1ª Comissão, não se sabe quando o será; e parece não haver meio de a nova apreciação ser sequer agendada para breve. O prazo regimental ordinário de 30 dias já expirou em 13 de Junho. Ao invés, foram já agendados para dia 28 de Junho Projectos de lei, apresentados bem mais recentemente do que os relativos às ILC.
A concretização dos direitos de Cidadania previstos na Constituição, de modo a que façam parte da vida prática, é uma questão não só importante, mas também prometida. A expectativa é alta e está consolidada [3]. Acreditamos que os Deputados, que são soberanos, não deixarão de lhe ser sensíveis. É que se justifica plenamente a urgente apreciação, discussão e votação desta matéria, até ao final da presente sessão legislativa. Será um importante passo em frente, no campo da Democracia participativa.
[1] Maria Benedita Urbano, O impacto da Quarta Revisão Constitucional na Parte III do Texto da Constituição: a Organização do Poder Político, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXIV, 1998, pg. 435.
[2] V. a discussão em Plenário Intervieram António Filipe (PCP), Sandra Cunha (Bloco de Esquerda), Vânia Dias da Silva (CDS), Heloísa Apolónia (PEV), Filipe Neto Brandão (PS), José Silvano (PSD).
[3] V. Editorial do Público, “Aproximar os cidadãos da Política”, de 6-5- 2016