Ninguém crê que só ao fim de quatro anos os médicos repararam que trabalham nas ruínas. O silêncio destes profissionais é preocupante e assustador. As recentes notícias dos desmandos nas urgências completam com factos um quadro mental que alguns portugueses têm bem assente: Portugal passou e passa um período de decadência em todos os serviços essenciais do Estado, com permanente desvalorização da coisa pública.
Só esta semana parece que o susto acordou a maioria. Há pessoas que morrem porque os médicos, mal pagos na sua percepção subjectiva do capital, se recusam a trabalhar. Ou, se não recusam, não podem salvar vidas por causa dos “cortes” orçamentais que levam a “cortes” em horas de serviço e escalas essenciais.
Jogar com a morte, a dinheiro, é um exercício proibido. Foi feito nos últimos anos pelo governo PSD/PP com a conivência de uma esmagadora maioria de médicos, que continuam a recusar-se a ser exclusivos do Serviço Nacional de Saúde ou mostram relutância em ir trabalhar para a província sem serem pagos como um Nababo emigrado em Helsínquia.
Os médicos, como os juízes e os pilotos de avião, são dos poucos que sabem ter a vida das pessoas nas mãos e usam essa prerrogativa para benefício pessoal e corporativo. Numa sociedade aberta esta atitude é um atentado ao bem comum e à dignidade. A posição de poder só deve ser entregue a quem dela não possa abusar. O que se viu nos últimos anos, no entanto, foi uma ética do “cada um por si” entre a generalidade daqueles profissionais. Médicos que ganham 10 mil euros por mês não se deviam queixar muito, apenas exercer a sua pressão social para que o sistema funcione.
Pensemos apenas nisto: uma das profissões mais nobres que a evolução social criou é a de professor. Ensinar é tão importante como curar, porque um cidadão estúpido e sem cultura ou conhecimentos é um animal perdido. Os professores, que deviam ser pagos como os médicos e os pilotos, aceitam hoje viajar quase trezentos quilómetros por dia para dar aulas a preço de saldo e levar para casa uns míseros 700 euros. Não estou a imaginar um exemplo: isto existe, basta procurar nas escolas dos vossos filhos.
Uma sociedade que aceita este tratamento desigual é aquela que está de bem com a exploração do homem pelo homem, uma sociedade de fidalguias adquiridas pelo “respeitinho” serôdio, uma sociedade que perdeu a vontade de reagir. Quando se aceita que um homem morra num Hospital sem que nada tenha sido feito para o salvar ou que um professor faça centenas de quilómetros para ensinar os antónimos, e aceita pelo voto manter tal coisa, então quem está em coma é a própria sociedade.
[…] Source: Ai, Sr. Dr., que me sinto tão morto… – Jornal Tornado […]