“Foi nesse momento que tomei consciência, ainda que fugaz, do que me acontecera. A minha única recordação, desde a altura em que caíra debaixo das árvores até que acordei na noite seguinte, é que mantive a cabeça fora da janela (…) tudo o resto se apagou da memória.” in Memórias de um alcoólico, Jack London.
Visto de fora, e numa sociedade onde o álcool está presente nas nossas vidas até antes do nascimento (não são raras as grávidas que bebem, até porque “um copo ou dois não faz mal a ninguém”), o vício da bebida parece confundir-se com a própria vivência de um bom português.
Não vou falar da questão do álcool/cultura/sociedade/”tem-que-ser”/”não-és-homem-não-és-nada”/”preciso-mesmo-de-relaxar”/”vamos-beber-um-copo”, que está instalada na vida dos portugueses, porque a economia envolvida nesta engrenagem (não é geringonça mas uma engrenagem) é outra história.
Por aqui ainda se incita ao consumo, carregando forte e feio nas camadas mais susceptíveis (os jovens), sendo empurrados para eventos que são patrocinados por bebidas alcoólicas – cervejas, sobretudo. Mas, infelizmente, existem mais e mais situações. Elas, as cervejeiras, querem lá saber do que pode acontecer durante ou após!
É possível distinguir três fases distintas de alcoolismo, começando com os primeiros sinais e concluindo com o estágio final. Quando alguém está no meio da doença, é-lhe difícil saber quando o consumo ficou fora de controle. Os mecanismos de defesa de um adicto são vários e conhecidos (negação, justificação, etc).
Dito isto, não é importante saber exactamente em que estágio o alcoólico está. O que é fundamental é que a pessoa dependente de bebida receba ajuda o mais cedo possível. E numa primeira fase, são os amigos e familiares que podem e devem ajudar.
São 15 os anos que levam um alcoólico do início ao fim deste terrífico processo. Não é um período certo, pois varia de pessoa para pessoa. O certo é que a fase final pode durar mais ou menos tempo dependendo de vários factores.
É importante notar que estas fases podem não ocorrer separadamente, pelo contrário, podem sobrepor-se ou combinar-se entre elas. Afinal, a vida, e particularmente o alcoolismo, não é sempre agradável e tem altos e baixos. Muitos altos e muitos baixos.
O que aqui deixo é um resumo, que não deve ser entendido nem como trabalho académico nem como uma regra de três simples, porque tal não existe quando se fala de alcoolismo. No entanto há padrões.
Temos então a chamada fase inicial
Os primeiros sinais de alcoolismo evidentes nesta fase são: beber pode deixar de ser apenas por uma questão social. Passa a ser também uma maneira de lidar com problemas emocionais ou “fazer-se sentir melhor”. Portanto, como se passa a beber mais e mais, a tolerância aumenta e rapidamente se está a beber muito mais do que o que os amigos “normais” toleram. Muitas pessoas nesta fase são capazes de beber muito e não parecer bêbados. E também muitas vezes nem sequer têm ressacas.
Fisicamente, parece não existir qualquer tipo de problema – pelo menos não por enquanto.
Nesta primeira fase é-se geralmente um “alcoólico funcional”. Isso significa que consegue manter-se a trabalhar, viver os relacionamentos que sempre teve, continuar com interesses e hobbies.
No entanto, é certo que durante uma grande parte do tempo eles podem mentir sobre a quantidade que, de facto, estão a beber, bem como a frequência. Mentir sobre a bebida tanto é absolutamente normal como frequente.
Nesta fase a pessoa ainda não tem consciência do seu problema e encontra-se em fase de negação.
Vamos à fase seguinte, a chamada Intermédia
Nesta etapa do alcoolismo, a pessoa começa a agir e parecer mais como o bêbado estereotipado e passa a perder o controle de seu consumo de álcool. Pode começar a beber no início do dia (embora isto não seja um sinal obrigatório, ou seja, há alcoólicos em fase terminal que nunca chegaram a beber no início do dia), e o exagero já não lhe é estranho.
Nesta fase, é normal que, a existirem, os companheiros sejam também alcoólicos ou para lá caminhem.
Não há mais nenhuma alegria em beber: apenas dor e auto-comiseração, sentimentos que o alcoólico vai gerido diariamente. É um ciclo vicioso: o álcool é um poderoso depressor, ora se a pessoa vai bebendo com o intuito de “se sentir melhor”, a verdade é que o que está a fazer é exactamente o contrário. Vai-se sentir cada vez pior. Dia após dia. Mas este ciclo vicioso mantém-se: graças aos mecanismos da negação e da justificação, e a cada dia que nasce, o alcoólico vai encontrar, tanto para si próprio, como para os outros, motivos e justificações para beber.
É um estado terrível, dado que o desejo torna-se mais intenso e praticamente impossível de controlar.
Parte da razão para que isso aconteça é que o corpo do indivíduo tornou-se tão sintonizado para beber que não pode viver sem a bebida.
Se o corpo não pode obter álcool, o viciado vai sofrer de ansiedade intensa, suores, agitação, alucinações e muito mais. Blackouts alcoólicas também podem ocorrer, bem como esquecimento total de factos ocorridos.
O cérebro, crivado de álcool, não consegue gravar experiências. Tudo e qualquer coisa pode ocorrer durante estes períodos – existem relatos incríveis de pessoas a fazer um sem número de coisas que vão desde viajar, a ter sexo, de visitar locais a ter conversas ou fazer coisas de que nunca mais se vão recordar.
Não há descanso, excepto quando lhe oferecerem uma bebida! Não podemos esquecer nunca que a ressaca de álcool é a única que mata!
É nesta fase que começam a aparecer problemas de saúde relacionados com o álcool: gastrite alcoólica, ressacas piores, problemas com o fígado, etc (existem dezenas de doenças físicas que estão relacionadas com o consumo de álcool.)
Considerando que, na fase de adaptação, o indivíduo conseguia trabalhar e manter relacionamentos, agora tudo começa a desmoronar-se. Começam a surgir problemas no trabalho e em casa.
O alcoólico está agora à beira de um precipício. Se não for ajudado, tudo vai piorar. Não há como voltar à fase inicial, em que beber era bom e divertido.
Fase final
É o fim. Ou o fim da vida da pessoa ou o fim de seus dias de consumo. Se não parar de beber, morre. Nos preâmbulos dos alcoólicos anónimos existe esta frase que resume milhões de experiências: é uma doença que “termina sempre da mesma maneira: prisões, hospitais ou morte”.
Tão simples quanto isto.
O estágio final do alcoolismo não é bonito. Nem para o doente, nem para quem se mantém com ele a testemunhar o seu declínio (os co-dependentes).
Nesta fase, o corpo do indivíduo está envenenado. Existem muitos problemas físicos que podem surgir nesta fase, tal como a doenças cardíacas, o fígado gordo, a cirrose do fígado, hepatite alcoólica, pancreatite, tremores (ao ponto de não conseguir fazer a sua própria assinatura…), desnutrição, danos no cérebro e assim por diante. Tudo doenças graves, muitas delas fatais.
Não só existem problemas físicos, mas também mentais. Nesta fase podem aparecer delírios, confusões mentais, esquecimentos, episódios psicóticos.
As suas relações ficam, na maioria dos casos, irreparavelmente danificadas. Os empregos são perdidos. Beber é agora o único foco de interesse e todas as outras necessidades são ignoradas: comida, abrigo, calor, água, etc.
Surpreendentemente, muitas pessoas, nesta fase, ainda estão em negação sobre a sua condição. Ainda culpam tudo e todos pelos seus problemas, excepto o verdadeiro responsável: o álcool.
Embora já em sério risco de vida, o alcoolismo em fase terminal pode ser tratado.