Ao contrário de muitos outros que não tiveram a mesma sorte, o meu amigo nunca chegou a estar no Aljube e a sua foto não vai certamente figurar no museu. Mas o episódio que viveu merece ser recordado, numa altura em que de novo pelas piores razões aquele lugar sinistro do tempo da ditadura voltou à atualidade.
Esta contou-ma um velho amigo meu, rapaz da minha idade, hoje desfrutando de uma merecida aura mediocritas, depois de uma vida agitada pelo mundo em pedaços repartida.
Tinha-se-me varrido do espírito, mas agora aflorou, quiçá despertada pelo alvoroço em torno do Aljube, em que de novo Mao confronta Stálin, com Portugal pelo meio…
Jovem militante do PC nos seus verdes anos de faculdade, o meu amigo – cuja identidade preservo pelo respeito que se deve à privacidade – perseguido pela PIDE e obrigado a atravessar a fronteira a salto para não ser preso e ter de ir combater nas colónias, numa guerra inglória condenada internacionalmente e que já se anunciava perdida – viu-se de repente emigrado na Europa, reduzido à condição de refugiado das Nações Unidas e tendo de ganhar o pão com o suor do seu rosto.
Quando já tudo parecia perdido, e as lutas em Portugal remetidas ao silêncio, eis que lhe surge um convite da Suécia: na qualidade de ex-dirigente associativo, alguém tinha indicado o seu nome e as associações estudantis daquele país nórdico convidavam-no a ir falar aos estudantes suecos sobre a luta travada em Portugal contra a ditadura.
O meu amigo procurou então informar-se de como iam as coisas no país e com um caderno cheio de anotações lá se apresentou na data marcada para o colóquio promovido pelos estudantes na universidade de Lund.
Tudo decorreu normalmente, até que de repente um grupo de jovens da mesma idade ou mais velhos que ele começaram a hostilizá-lo de tal maneira que se viu obrigado a deixar a sala à pressa para não ser agredido.
Espantado, sem saber bem do que se tratava e qual o motivo de toda aquela agitação e agressividade, o meu amigo foi então esclarecido pelos colegas suecos: o grupo hostil – explicaram-lhe – era composto por estudantes portugueses iguais a ele, que tinham fugido para a Suécia e ali se encontravam refugiados.
Mais espantado ainda ficou o meu amigo: então eles eram portugueses como ele, refugiados como ele, longe da pátria pelos mesmos motivos que ele e estavam contra ele? Porquê?
A razão – veio a saber – era ideológica – como jovens maoistas, eles eram ferozmente anticomunistas ortodoxos, a quem acusavam, entre outros pecados, de pretenderem travar a luta dos trabalhadores portugueses e subordiná-la aos interesses de Moscovo, para já não falarmos dos crimes do Gulag… Isso numa altura em que estava ainda em pleno curso a chamada Revolução Cultural de Mao, com o seu rosário de crimes e arbitrariedades de toda a ordem…
Gorada a sessão de esclarecimento pela agitação provocada pelos seus próprios compatriotas, quem lhe valeu foram os estudantes sociais-democratas suecos, que ficaram escandalizados com aquela atitude anti-democrática do grupo maoista.
Afinal, o pequeno escândalo acabaria por suscitar mais interesse pelo que ele tinha a dizer e foi assim que foi entrevistado por um grande jornal e participou depois num programa de rádio de grande audiência, podendo finalmente descrever sem empecilhos o que se passava em Portugal.
Ao contrário de muitos outros que não tiveram a mesma sorte, o meu amigo nunca chegou a estar no Aljube e a sua foto não vai certamente figurar no museu. Mas o episódio que viveu merece ser recordado, numa altura em que de novo pelas piores razões aquele lugar sinistro do tempo da ditadura voltou à atualidade.
Um dia destes ainda vou ver se o encontro e se ele me autoriza não só a divulgar o episódio com os pormenores de quem o viveu realmente, mas até, quem sabe, com a sua própria foto e não apenas com a imagem da associação de estudantes onde decorreu o inusitado confronto entre jovens portugueses fugidos da ditadura.
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90
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