E cinicamente alguns políticos aprenderam a surfá-la, fazendo-se passar por “out-siders” para obter o voto popular que os conduza… à liderança desse mesmo “establishment”!
Um dos primeiros a fazê-lo com êxito neste século foi George W. Bush, cuja campanha eleitoral segui de perto, no ano 2000, como correspondente da RTP – a televisão pública portuguesa – nos EUA. As frases dos seus discursos eleitorais eram cuidadosamente calibradas com base em sistemáticas pesquisas de opinião por forma a ir de encontro a esse sentimento.
Uma dessas frases de efeito que o público adorava ouvir e sempre acolhia com forte aplauso era aquela em que Bush filho explicava assim a necessidade de se proceder a um corte de impostos: “Because it’s not the government’s money – it’s the people’s money!”
Agora, quem desempenha esse papel de “out-sider” à perfeição é o já garantido candidato republicano à Casa Branca, Donald Trump, que junta à fraseologia “anti-mundo político” um currículo de grande sucesso nos negócios privados, que faz dele aparentemente um vencedor nato – um verdadeiro “winner”, tão ao gosto da mentalidade norte-americana.
Ainda que muitos desses negócios estejam longe de ter sido transparentes, o que conta, para o grande público, é a atitude “fora do sistema” que Trump cultiva até à exaustão através de uma postura e de uma linguagem desbragadas com as quais procura identificar-se com a idiossincrasia do americano médio, o chamado homem comum.
Sinais de perigo
Nada disso é novo na política dos EUA e não haveria, portanto, razões para alarme se tudo não passasse da habitual retórica política – um jogo consciente para ganhar adeptos e garantir votos.
Mas, desta vez, infelizmente, as coisas já foram longe demais e podem ainda piorar. A ameaça de erguer um muro ao longo de toda a fronteira com o México e expulsar os 11 milhões de imigrantes em situação irregular; a promessa de barrar o acesso aos EUA de todo e qualquer muçulmano; o tratamento descortês e por vezes ameaçador usado para com a imprensa – são sinais preocupantes que alguns analistas classificam de xenófobos, homofóbicos e proto-fascistas e têm levado muitos, dentro e fora dos EUA, a interrogarem-se seriamente sobre o perigo de virmos a ter em Washington um presidente tirânico.
Um perigo para o qual alertou, já no século XIX, o grande ensaísta francês Alexis de Tocqueville, ao chamar a atenção, no clássico “A Democracia na América”, para a possibilidade de virmos um dia a ter, por força do completo domínio conferido nos EUA à vontade da maioria, um governo tirânico que não respeitasse as minorias.
Sonho americano em baixa
A situação é paradoxal, como paradoxal é, à primeira vista, a existência de tão forte descontentamento com o mundo político de Washington, quando a situação económica do país está longe de ser negativa. Na administração Obama, a América recuperou da crise financeira que abalou o mundo em 2008, o desemprego baixou para apenas 5% e o ano passado o PIB cresceu 2,4%.
Mas isto é apenas a superfície. Uma análise mais aprofundada mostra-nos que os benefícios desse crescimento não têm sido proporcionalmente repartidos, concentrando-se numa camada restrita de milionários e multimilionários e deixando à míngua a maioria da população, incluindo a generalidade das classes médias, que sempre foram, em toda a parte, a base social de apoio dos regimes democráticos.
De acordo com relatório do Instituto de Política Económica dos Estados Unidos, o rendimento de 99% do povo americano diminuiu nos últimos anos, enquanto que o rendimento dos 1% mais ricos teve um crescimento de 36,8% (“EUA – um país cada vez mais desigual”, 2015).
De 1999 para cá, registou-se um decréscimo do poder de compra das famílias, que viram os seus bens diminuir em cerca de um terço e que, para poderem manter o nível de vida têm cada vez mais que recorrer a empréstimos. Dois terços dos lares norte-americanos estão hoje endividados, parte deles fortemente.
Daí o descontentamento e a descrença no sistema. De acordo com o New York Times, o número de pessoas que ainda acreditam no sonho americano é o mais baixo dos últimos 20 anos e mais de metade dos jovens americanos com menos de 25 anos não acreditam que o capitalismo seja o melhor dos sistemas.
Foi esta mudança de atitudes – estas vinha da ira – que tornaram possível a um candidato a candidato como o democrata Bernie Sanders defender abertamente um projecto de cariz socializante num país em que a palavra socialismo há muito tinha virado anátema.
O apoio a Trump vem, entretanto, ao que tudo indica, não tanto das camadas mais desprotegidas, mas sobretudo da classe média alta e branca – intimidada com a crescente ascensão de negros e latinos e com receio de poder cair na situação em que as camadas médias e baixas já se encontram. Daí o eco que têm as propostas de cariz nacionalista, anti-globalização e fecho das fronteiras apregoadas por Trump: American First, American Better, America Great Again…
Do lado democrata, Hillary Clinton, sendo como é uma personagem do “establishment”, dentro do qual fez toda a sua carreira e onde enriqueceu, pode não ser capaz de conter a onda de descontentamento.
Hoje, como nos anos 30 do século passado, a superação dos problemas que geram as vinhas da ira depende talvez sobretudo – como já então sugeria o escritor John Steinbeck – da capacidade que os deserdados tenham ou não de se unir para se opor às políticas que os condenam à pobreza e trazem agora no bojo ameaças à própria democracia.