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João de Sousa

Domingo, Setembro 1, 2024

American dream!

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT

Lembrei-me da crítica impiedosa que fazia a esses “politicanti senza mestiere”, “politiqueiros sem profissão” que ocupavam os gabinetes do poder em Roma. Essa mesma “Roma Ladrona” que o Senatur e futuro ministro Umberto Bossi, líder da Liga Norte (acusada essa sim de roubar!), tanto vituperava. E desses politiqueiros que só falam e se lamentam, mas que não fazem nada, também viria a falar o novo Presidente no seu discurso. Não sei a quem se referia, mas lá que ouvi, ouvi.

Ouvi-o também dizer que a sua posse não era uma transferência de poder normal, de um partido para outro ou de um governo para outro… mas que era, isso sim, uma transferência de poder de Washington DC para o povo. Que não era uma transferência de poder de políticos que enriqueceram para outros que iriam enriquecer com o poder, enquanto esse povo continuava a viver na miséria. Que esta, sim, era a devolução desse poder ao povo. Foi isso que disse e repetiu. E isso sabe a assunção carismática do poder no seu sentido quase religioso.

Trump como o intérprete legítimo desse povo a quem os politiqueiros oportunistas (“nullafacenti”, diria Berlusconi) roubaram o poder. Com ele, esse povo não só iria ter o poder nas suas mãos como iria, com ele, sonhar, trabalhar e enriquecer, protegido pelo Criador Omnipotente que nunca abandona a América. Devolução do poder ao povo… Mas esta é a fórmula agora em vigor para os movimentos anti-establishment, de direita e de esquerda. Incluindo, nalguns casos, neste establishment, o poder mediático (o MoVimentoCinqueStelle e o próprio Trump, como se viu na famosa Conferência de Imprensa).

Trump – “Deus Ex Machina”!

Trump foi resiliente e ganhou. Contra Washington, sem dúvida. Contra políticos e media. Mesmo contra o seu próprio partido. E, ao ganhar, reforçou a convicção profunda de ter razão. Em tudo, como se vê pela fúria demolidora com que está a tratar os dossiers de Obama. E agora, que é Presidente, que melhor do que imputar essa sua razão ao povo, fazendo-se, dele, seu legítimo intérprete? Foi o que fez num discurso de tipo cesarista. Sem poupar os seus antecessores. Com ele, disse, a “carnificina americana” terminava ali, sem que ninguém lhe tenha perguntado quem eram, afinal, os carnífices! Mas disse também que a utopia que libertará a terra de todos os males começa com ele, “aqui e agora”. Em nome do povo e com a bênção do Criador Omnipotente.

Resgatar a América! Sim, uma narrativa deste tipo é a que começa o genial (e propagandístico) filme da Leni Riefenstahl, “Triumph des Willens” (“Triunfo da Vontade”). A Alemanha humilhada (pelo “Tratado de Versalhes”, 1919) iria ser resgatada por esse Deus Ex Machina que descia das nuvens em Nuremberga, em 1934 (o filme é de 1935). Não ouso, claro, citar o inominável, até por respeito por esse País extraordinário que é a América (que ajudou a derrotá-lo). Mas que a narrativa dá que pensar, dá. Resgatar a América. É só ver o início do filme! Este é o sentido profundo do discurso de tomada de posse do 45.º Presidente dos Estados Unidos, Donald John Trump. Os encenadores anteriores a ele criaram tais problemas no enredo americano (a tal “carnificina americana”?) que só esse Deus Ex Machina chamado Donald John Trump poderá resolver nesse gigantesco palco chamado América. Agora só falta mesmo o filme!

“Força à peça!” – vem aí a desregulamentação!

Ficam para trás (por agora, já que voltarão, e com esplendor!) os eficazes truques de spinning e irrompem a política e a ideologia a sério! Com a constituição do Gabinete da Casa Branca e com o Governo. Com a entrada em força nesse governo, em áreas estratégicas, de homens do Goldman Sachs. Com o fim desse simulacro de welfare que era (sim, já era) o ObamaCare. Com o congelamento do emprego público. Com o fim da TPP (TransAtlantic Partnership). Com o fim de qualquer tipo de financiamento lá onde cheire a interrupção voluntária da gravidez. Com a baixa drástica dos impostos (classe média e empresas). Com o início da desregulamentação. E com o início de uma política nacionalista e proteccionista radical. Se a isso juntarmos a vontade declarada de acabar com a União Europeia e o Euro, mas também a crítica frontal à política de imigração do governo alemão, já teremos que chegue para percebermos para onde vai Trump.

Mas volto a lembrar-me do Silvio Berlusconi do conflito de interesses e não só do anunciado e hossanado “American Dream”. Também Trump tem de resolver aquilo que Berlusconi não só nunca resolveu como agravou. E lembro-me também, e cada vez mais, dos populismos que grassam por essa Europa fora, afinando pelo mesmo diapasão. E ainda dessa onda anti-União que começa por cá a ganhar adeptos demais para não começar a ser uma séria fonte de preocupação.

O Michael Walzer disse uma coisa interessante num recente artigo, na “Dissent” (“A esquerda perante Trump procura aliados ao centro” – título da versão italiana do artigo), sobre populistas e neoliberais: eles estão, diz, intimamente ligados porque o populismo é alimentado pelas políticas neoliberais da austeridade a quem os populistas querem dar solução. Ou seja, o populismo é filho das receitas neoliberais, na medida em que são estas receitas que alimentam o descontentamento que leva ao triunfo do populismo. Por isso, e no fundo, trata-se de farinha do mesmo saco. Bem sei que o problema é mais complexo, mas, no fundo, Walzer tem razão.

Em suma

A orientação política dos Estados Unidos está coerentemente definida. Serão recorrentes, no discurso político, alguns estereótipos que estiveram presentes no discurso de posse de Trump – nacionalismo, patriotismo, “american dream”, grandeza americana, povo, trabalho, liberdade, orgulho americano – e que constituirão a ossatura do seu discurso ideológico, corporizado depois nas políticas que acima enunciei.

A experiência internacional do seu antecessor Bush deu os frutos envenenados que deu e que todos estamos a pagar. Obama em política internacional também não foi muito brilhante. Mas de Trump, sinceramente, com a arrogância nacionalista e temerária que está a exibir, é de temer o pior, já que parece não reunir condições de sageza para partilhar com eficácia, modéstia e moderação os graves problemas que se põem à política internacional. Mas esperemos que não!

Nota do Director

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