Agora que se estava a aproximar o final da prorrogação de uma moratória justificada pela Covid-19, surgiu o recente anúncio pela administração norte-americana de um programa de cancelamento da dívida estudantil, medida muito falada durante a campanha eleitoral mas que se foi arrastando nos meandros de negociações entre democratas e republicanos, facto que merece referência e reflexão.
Além do enquadramento apresentado na Parte I, a proposta de perdão de dívida agora sugerida justifica outro tipo de reflexão, ou não tivéssemos vivido há uma década um falso debate sobre a questão do perdão da dívida.
Muitos que hoje parecem aceitar sem indignação ou repulsa o write off daquela dívida são os mesmos ortodoxos que então ameaçaram rasgar as vestes perante a sugestão dessa necessidade no caso das dívidas dos países da Europa do Sul. Claro que se escudam na dúvida sobre a legitimidade do recurso ao crédito para assegurar uma formação que deveria ser vista universalmente como um bem público, mas convém recordar que então não admitiram sequer ouvir falar na ilegitimidade de muita da dívida pública; visivelmente contrafeitos concordam com a ideia, mas nem por isso deixam de invocar dúvidas sobre a equidade da medida, pela desproporcionalidade que cria face aos que a ela recorreram no passado e já a liquidaram na íntegra.
Tudo questões que podendo ser moral e eticamente pertinentes, apenas escondem a fragilidade da própria argumentação. É que em matérias desta natureza e com aquele nível de sensibilidade social não existem soluções absolutamente justas, tal como no caso do serviços das dívidas públicas e em especial quando estas foram contraídas para assegurar investimentos de duvidosa utilidade social e económica (lembremos no caso nacional as obras públicas, como a segunda travessia do Tejo ou a desproporcionada rede de auto-estradas depois benemeritamente entregues à exploração privada, ou a aquisição de equipamentos militares dispendiosos e de duvidosa utilidade)… mas neste caso e nesses tempos havia que servir outra agenda que não a das populações mais duramente afectadas pela solução da austeridade expansionista imposta pelos credores.
E não se deduza daqui que a real motivação para o cancelamento das dívidas estudantis norte-americanas é uma qualquer súbita preocupação com a situação económica e financeira de antigos ou actuais devedores. O que efectivamente deverá estar a motivar a decisão da administração norte-americana é o novo avolumar da sua dívida pública – ditado pelos custos da pandemia e agora da luta contra a Rússia e do apoio à Ucrânia – e o fundado receio do catastrófico efeito que poderia ter o rebentamento de uma nova bolha financeira alimentada pelo disparar das taxas de incumprimento de um tipo de créditos com aquela sensibilidade social, numa altura em que a dívida norte-americana já alcançou os 30 biliões de dólares, ou seja, o equivalente à totalidade do PIB nacional.
E as razões para o forte crescimento do endividamento mantém-se; a economia continua particularmente frágil e o esforço de apoio à continuação da guerra na Europa não pára de crescer, com os EUA a juntarem mais 25 mil milhões de dólares à sua dívida, até meados de Maio deste ano.
Mesmo que a maior parte daquele valor se traduza afinal em crescimento das vendas do seu aparelho militar industrial, nem por isso deixa de agravar um défice que já vai alto e que a julgar pelos padrões em uso na época da crise das dívidas soberanas, já se deveria ter traduzido numa queda do rating da dívida norte-americana para o nível de “lixo” e em severas críticas e não menos rigorosas medidas que salvaguardassem os interesses dos credores… como então se fez aos países da Europa do Sul.
Claro que estamos a entrar no reino da ficção e o que na realidade está a acontecer é o mergulhar da Europa numa crise de contornos ainda pouco definidos e numa desvalorização do euro, porque os “mercados” já começaram a descontar a crise e os seus esperados efeitos na redução do PIB.
Enquanto deste lado do Atlântico vamos empobrecendo alegremente, do outro continua a contribuir-se activamente para o crescimento da dívida global, que em finais de 2021 já ultrapassava os 300 biliões de dólares, montante que representa mais de 3,5 vezes a riqueza mundial produzida anualmente e, se mais não fosse, deixa a clara ideia da completa insolvabilidade deste modelo económico assente sobre uma gigantesca pirâmide de dívida que através de uma desenfreada especulação alimenta a monumental ilusão que continuamos a “crescer” e a “enriquecer” como se não houvesse amanhã.