A Amnésia selectiva de Passos Coelho
Creio que já se pode declarar oficial: em resultado de vivermos num regime semi-parlamentar, em que o primeiro-ministro é designado pelo Parlamento, Passos Coelho não ocupa o tão almejado cargo e, não tendo ainda logrado assimilar este facto, encontra-se seriamente afectado na capacidade de relembrar acontecimentos tal como ocorreram e de os interpretar lucidamente de acordo com os bons princípios da sensatez e diligência exigíveis a qualquer pater familias mediano.
Que Passos Coelho não leu a Constituição ou, se leu, não lhe reconhece o valor de lex fundamentalis a que todas as outras leis se devem submeter, já todos sabíamos. É na Constituição que estão vertidos os princípios fundadores do Estado e do Estado de Direito, os órgãos da República e respectivas atribuições, bem como os valores estruturantes da Sociedade, nos planos jurídico, político, económico, social e até ético e moral.
Para Passos Coelho a Constituição da República não passa de um mero documento de “faça o que lhe der na realíssima gana”, tipo Manual do Escuteiro Mirim – o último livro que terá lido chegando quase à página 30. “Missionário” de uma Ideologia vincadamente inimiga das Constituições em vigor na maioria dos países da Civilização Ocidental, muitos há que o definem como “aconstitucional“, isto é, alguém desprovido de qualquer vestígio de “consciência” civilizacional e democrática. Erram em toda a linha.
Passos tem uma dada ideia de ordem Constitucional, bebida numas “fichas de leitura” de autores como Hayek ou Friedman, que alguém lhe emprestou, e num acervo de post it do Reagan e da Thatcher, classificados pelos próprios na série “ideias a rejeitar por serem demasiado imbecis”, que adquiriu a um vendedor de antiguidades (putativamente indo-paquistanês) no Marché aux Puces em Paris.
Darwinista social, Passos Coelho não atribui qualquer relevância, política, económica, social, à condição humana, dividindo os seres que comungam desta condição em duas subespécies: uma com interesse, porque lhe paga para realizar uma determinada tarefa; e outra, com interesse, porque produz os recursos com que a primeira lhe paga. A primeira é reverenciada e bajulável, a segunda é desprezível e, sobretudo, fungível.
Este ideário político e ideológico não é acidental, pelo contrário, é instrumental. Intimamente, Passos Coelho identifica-se mais com a segunda mas não quer que isso se saiba. Daí o evidente e constante esforço em ser, e parecer, uma obediente “voz do dono”, amplificador da voz dos donos da bola, e da piscina, com a “fezada” de os iludir na sua “representação” de que é um deles; ou de os conquistar disponibilizando-se, como fiel lacaio, para executar o “trabalho sujo” em que os seus amos-ícone recusam, e receiam, sujar as mãos.
Quero acreditar que os seus mentores – dois conhecidos empresários – estão cientes das severas limitações de tal pupilo, equiparando-o a “O Homem sem qualidades”, do Robert Musil. Não obstante, o ex-primeiro-ministro tem, do ponto de vista destes, vantagens assinaláveis: desde logo, o preço – Passos é “baratinho”. Consciente da própria irrelevância aceita, e até agradece, ser compensado sobretudo em “alimento espiritual”, isto é, em estatuto mesmo que coercivamente imposto, sem menosprezar a componente material que assume aqui o papel secundário de fringe benefit – um benefício colateral.
Está explicada a selectividade da memória de Passos Coelho. Criador de uma narrativa, cem por cento ficcional, Passos está confortável com a circunstância de rever o passado, reescrever a história, reinventar as personagens durante o desenrolar da trama. Afinal, tudo isto lhe pertence, ou, pelo menos, de tudo isto é usufrutuário, em nome de outrem, é certo, mas com a posse, inequívoca.
Os “Interesses Alheios”
O Relvas, a Tecnoforma – empresa de formação de técnicos aeroportuários desnecessários – e os “contratos de associação” firmados à vigésima quinta hora do seu governo, eventual moeda de troca de apoio eleitoral, foram criteriosa e cirurgicamente apagados da sua memória, porque incompatíveis com o desenrolar da narrativa e desenvolvimento das personagens indispensáveis à “missão” que abnegadamente se atribuiu: a de servir os seus “senhores” sentindo-se recompensado pelas migalhas que estes vão deixando cair.
Invocando no seu discurso “interesses alheios aos da Comunidade”, atribuindo-os a terceiros, Passos mais não faz que o auto-retrato do seu roteiro pessoal. É uma auto-crítica, serôdia, portanto, mas cirúrgica. Os negócios sustentados com fundos europeus, os rendimentos esquecidos, as questionáveis despesas e empresas, os esquecimentos de pagar a Segurança Social.
Alheios aos interesses da Comunidade foram, e são, os interesses defendidos por Passos Coelho, a “voz do dono” dos “empresários” do Ensino, cujo móbil, como é natural, nada tem de nobre ou de altruísta. O seu propósito é, como o de qualquer empresário, suprimir o risco do seu investimento, garantir a renovação e alargamento do seu mercado, através de um fiduciário silent partner.
Os Ensinos Público e Privado
A Constituição define de forma inequívoca a universalidade e “gratuitidade” do ensino, considerando-as desiderato e prioridade nacionais. À questão da universalidade é atribuída tal importância que a Constituição, e o Estado, aceitam financiar, em escolas privadas, os estudos de todos aqueles que, por esta ou aquela razão, não tenham acesso a estabelecimentos públicos de ensino. E define diferentes instituições habilitadas para a função: privadas, cooperativas, sociais.
Com o decorrer dos anos, sob a alçada de governos de cores diversas, alguns “empresários” do sector descobriram um el dorado neste conteúdo programático, e nobre, da Constituição. Investir com risco? Nah! Isso é para totós! Se temos aqui um filão passível de explorar, mesmo contornando os objectivos da lei, porque não aproveitar?
Criam-se as turmas, o estado fornece os “clientes” e paga por eles. Haverá negócio melhor? Os proveitos permitem reforçar o valor da “oferta”, acrescentando-lhe ingredientes que farão de pais e encarregados de educação os melhores advogados, procuradores e “carne para canhão” da perpetuação do “negócio”, tão agradável e isento de risco. Equitação, esgrima e actividades extra-curriculares de topo compõem o ramalhete.
Pagar menos aos Professores – obrigando-os a trabalhar mais horas – e precarizar a condição profissional destes produz dois benefícios adicionais e complementares – gera um aliado de peso, coagido pelo medo da perda do posto de trabalho, e maximiza os lucros, objectivo principal de qualquer empresa.
Com o bruá daqui resultante ninguém se vai lembrar que por cada posto de trabalho suprimido nos privados outro será criado no ensino público, uma vez que as crianças não vão desaparecer.
E um benefício adicional. Deste modo os contribuintes pagam não apenas o ensino universal garantido pela Constituição como contribuem ainda, de forma substancial, para co-financiar o ensino dos mais abastados permitindo baixar os preços pagos por estas famílias.
O Direito de Escolha
Neste processo tem-se ouvido muito falar do inalienável “direito de escolha”, algo congénito, reivindicado por alguns pais e encarregados de educação como “direito natural” de origem divina, que lhes assiste, e aos seus rebentos, de estudar em escolas para “ricos” a expensas dos restantes pais e encarregados de educação cujos filhos não foram ungidos com tal bênção e que por isso têm de frequentar escolas cuja oferta consiste naquilo que a Constituição garante a todos os cidadãos, e dos contribuintes em geral.
Estes protagonistas não deixam de ter alguma piada, no sentido em que qualquer demagogo tem alguma piada. Não é o direito de escolha que está em causa. Em causa está quem paga o quê, sendo que “o quê” é o compromisso do Estado definido pela Constituição. E o compromisso do Estado, postulado pela Constituição, é o da universalidade do Ensino em condições dignas, de qualidade e igualdade para todos. Os caprichos e tiques patéticos de novo-riquismo não cabem nesse compromisso. Do mesmo modo que financiar empresas privadas vai contra diversas outras regras constitucionais.
Têm, como tal, os pais e encarregados de educação assegurado o seu direito de escolha. Podem escolher a escola que entenderem para os seus educandos, desde que, como é natural, a paguem.