Vivo ou não-vivo suscita cólera em todos os humanos, e gera grandes dúvidas e inquietações no que ao amor diz respeito. Como se ama em tempos de Covid-19? Em tempos de Covid-19, ama-se como antigamente, como na Idade Média?
Os dias correm como os dedos de um pianista percorrem as teclas de um piano de uma peça em andamento “prestíssimo”. “O amor em tempos de cólera”, obra de Gabriel Garcia Márquez, lida em tempos de madura adolescência, foi novamente avistada pelos meus olhos agora em forma de película cinematográfica passada em canal de cabo. O amor forte, inquebrável, insuperável, inextinguível, imortal de Florentino Ariza por Fermina Daza em tempos de pandemia da Cólera, doença transmitida através da água contaminada com a bactéria Vibrio Cholerae, não foi sequer ameaçado nem tão pouco diminuiu por causa da Cólera, até porque essa bactéria não se transmitia pelas vias respiratórias e, dessa forma, os beijos dos amantes não estavam proibidos nem eram desaconselhados, a não ser por acção ou ensinamento de severidade patriarcal que impedia que o toque, o leve pousar de lábios em lábios se realizasse sem que a cólera dos progenitores se abatesse sobre os enamorados ansiosos por substituir a raiva dos pais pelos amassos que os corpos pediam e o amor exigia.
Florentino Ariza contabilizou 622 mulheres que se deitaram amorosamente com ele, alto número justificado pela ferida aberta no seu coração pela rejeição de Fermina Daza enquanto ainda era um jovem sonhador que aspirava à união sagrada com essa mulher que, por acção de seu pai, o rejeitara, fazendo-o diminuir a sua dor em 622 (vezes as vezes que o fizera com essas mulheres) companheiras sexuais, fenómeno explicado como uma forma de vingança inconsciente, de castigar aquela que a ele se recusara por causa da sua condição social, pois nunca eternizou em amor essas suas ligações furtivas, despedaçando alguns corações que terão ficado como o seu.
Durante mais de 53 anos (até ao dia em que, já depois dos setenta anos, se une fisicamente a Fermina Daza, tornando-a na número 623, número último e primeiro do fim da sua demanda por alívio das dores do coração), a sua cólera amorosa e gentil fizera vibrar o corpo dessas tantas mulheres, percurso manchado pelo sangue de Olímpia Zuleta, amante degolada por um marido encolerizado pela traição de uma mulher adúltera.
Quem sente a “cólera” sem doença nestes tempos de amor em tempos de Covid-19? Há raivas denunciadas publicamente, iras proferidas entre dentes cerrados ou em altos brados, fúrias galopantes e incontidas, há ódios mortais nas palavras que se dirigem a esse ente que nem sabemos se é um ser vivo ou não, dependendo da perspectiva de cientistas. Para uns, não tem células, não possui potencial bioquímico que possibilita a produção de energia metabólica, só são capazes de se reproduzir no interior de outra célula, o que faz deles parasitas intracelulares; para outros, o vírus Sarscov-2 é um ser vivo, pois realiza algumas atividades consideravelmente complexas, como “enganar” o nosso sistema imunológico, possui material genético, como o RNA, apresenta capacidade de evolução, como a mutação para esta mui contagiosa variante inglesa.
Vivo ou não-vivo suscita cólera em todos os humanos, e gera grandes dúvidas e inquietações no que ao amor diz respeito. Como se ama em tempos de Covid-19? Em tempos de Covid-19, ama-se como antigamente, como na Idade Média? Numa época de distanciamento físico, teremos voltado ao tempo do amor sem beijos nem toques, ao velho sistema do lençol com um furo no meio e a novíssima máscara nas caras depois de um banho em solução alcoólica a 70% ou limpeza corporal por esfregamento com sabão azul e desinfestação do ar do habitáculo onde a união se dará?
Andaremos todos a tomar anti-depressivos, estatinas, anti-hipertensivos ou opióides que vaporizam a líbido até ela ser uma névoa varrida pelos suspiros longos e prolongados pela saudade dos tempos em que o corpo estremecia e o corpo de um outro estremecia também, tremor apenas acalmado pela união das placas tectónicas de dois corpos em encaixe pacificador? Andaremos todos paralisados pelo medo que congela o sangue que nos corre pelas veias, impedindo-o de se aquecer e de irrigar os nossos cérebros mirrados pelo frio e, consequentemente, de se fazer chegar aos nossos actores principais dessa dança ritmada e louca que é o… sexo? Pois, não sei, não tenho respostas para tais questões.
O que me incomoda muito, consequência da revisitação da obra de Gabriel Garcia Márquez em forma televisiva, é a situação clínica dessa instituição intemporal e cada vez mais tolerada que é o Adultério. O adultério tão bem celebrado pela referência do narrador de “Os Maias” à juventude do cadavérico e espectralmente sombrio Tomás de Alencar, poeta ultra-romântico que, na mocidade, “e durante vinte anos, em cançoneta e ode, propusera comércios lúbricos a todas as damas da capital; (…) fizera a propaganda do amor ilegítimo, representando os deveres conjugais como montanhas-de tédio, (…) passava ele próprio uma existência medonha de adultérios, lubricidades, orgias”.
Quantos adúlteros (e neste plural incluo, obviamente, as adúlteras) vivem tempos de cólera aumentada por acção egoísta e amoral desse maldito Sarscov-2? Quantas vingativas sessões de paixão louca se terão deixado de se realizar por culpa desta pandemia que paralisou o amor intenso vivido no adultério? Quanta tristeza se arrasta pelos pés pesados de uma prisão domiciliária que não permite encontros furtivos, visitas rápidas a motéis na berma das estradas, escapadas furtivas para atendimento de um cliente da empresa com necessidade de apoio técnico? Quantas viagens de negócios se não terão concretizado a países longínquos onde a luxúria e o ardente desejo encontram o parceiro ou a parceira dessa libertadora e entusiasmante sessão de um prolongado e seguro encontro passional? Quantos adultérios que colam o casal a uma união perene se não terão realizado e terão levado ao esgotamento no confinamento dos corpos e no confinamento das vontades? Quantos Florentinos Arizas e quantos Alencares terão sentido o chão que lhes aguenta a existência volatilizar-se e caíram nesse poço interminável da angústia e do mar sem os cabelos cheirosos de um corpo enlanguescido a que se pudessem agarrar?
O amor em tempos de Covid-19 é um amor feito de cólera, de passividade, de resignação. Em Portugal, entre 1 de Julho e 30 de Setembro, registaram-se 3862 divórcios, mais 235 separações do que em igual período do ano passado e até Setembro de 2020 realizaram-se 16195 casamentos, menos 58,6% do que em 2019. No Brasil, em Setembro, o número de divórcios aumentara 54% face a período homólogo. Na China, o número de divórcios após a quarentena aumentou consideravelmente. A nível de exemplo, refira-se que o advogado especializado em divórcios, Steve Li, que trabalha na Gentle&Trust, em Xangai, diz que o número de casos que recebeu aumentou 25% desde que a cidade aliviou as medidas de isolamento, em meados de março. Segundo o advogado, a infidelidade costumava ser o principal motivo para os clientes baterem à porta do seu escritório, acrescentando que “as pessoas têm tempo para casos extraconjugais quando não estão em casa”. Se, depois do confinamento, o número de divórcios aumenta, parece irrefutável que o adultério causa menos separações do que a ausência do mesmo. A boa notícia é que a vacina já começou a ser inoculada e, em breve, se não houver muitos negacionistas, os Florentinos Arizas e os Alencares deixarão a medicação, o confinamento, voltarão aos hotéis e aos motéis e o amor próximo do cônjuge e o adultério encoberto com o/a amante voltarão para salvar o sagrado matrimónio do casamento.
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