A inesperada morte, aos 63 anos, do politólogo português André Freire, suscitou numerosas e sentidas reacções por parte de colegas e amigos, alunos e antigos alunos, deputados dos partidos de esquerda e até, institucionalmente, da Presidência da República. Deixem-me deixar aqui também algumas palavras, em que terei especialmente em conta a síntese biográfica divulgada no seu mural no Facebook anunciando a sua morte e o projecto de voto de pesar subscrito por deputados à Assembleia da República dos partidos de esquerda.
Intervenção sindical como forma de participação cívica
Começarei pela pertença de André Freire ao Sindicato Nacional do Ensino Superior (SNESup) que sempre encarou como forma de participação cívica, como decorre da síntese biográfica incluída no texto que anunciou a sua morte. No projecto de voto de pesar dos deputados escreveu-se, com muita justiça: “Foi também delegado sindical e representante dos docentes do ISCTE no SNESUP, tendo permanecido ao longo dos anos empenhado em diferentes instâncias da vida da Universidade”. O Sindicato Nacional do Ensino Superior é também referido no artigo da wikipedia relativo a André Freire, já actualizado com a data da sua morte, em 30 de Outubro de 2024, André Freire e na badana de Austeridade, Democracia e Autoritarismo, Nova Vega, 2014. É essencialmente dessa participação no SNESup que o conhecia, e julgo não ser muito comum os académicos indicarem em notas curriculares a sua filiação sindical(i)(ii).
Nos muito peculiares Estatutos vigentes no SNESup desde a revisão de 1993, os associados candidatam-se ao Conselho Nacional por secções sindicais correspondentes às escolas e institutos de investigação, podendo delegar o voto nos eleitos pelo mesmo círculo, e exercem por inerência funções como delegados sindicais. Creio que André Freire poucas vezes terá participado presencialmente em reuniões do Conselho mas sempre contribuiu para manter no ISCTE uma presença visível do SNESup.
Tenho aliás presente o seu esforço, bem sucedido, do qual me deu parte, para que, a seguir ao seu período de maior intervenção pessoal, se constituísse uma nova equipa de delegados sindicais. E recordo duas interacções pessoais, que muito me sensibilizaram, a propósito de conjunturas vividas no SNESup, uma das quais o levou a propor-me tomarmos um café perto de sua casa, manifestando-me o seu choque com a violência verbal manifestada no confronto entre duas listas em eleições sindicais, dizendo-me que não apoiaria nenhuma.
Estou a escrever o presente texto, que de certa forma tem carácter de depoimento, porque, procurando as mais recentes Direcções do SNESup valorizar junto dos associados a projecção do Sindicato na comunicação social, não vi na comunicação da actual Direcção – comunicados dirigidos ao conjunto dos associados, Boletim Impacto, Recortes de Imprensa – elogiada a acção de André Freire e a sua persistentemente assumida identificação com o Sindicato Nacional do Ensino Superior.
E não se tratava apenas de uma atenção às lutas. Desiludi certamente o associado André Freire quando uma vez pediu a minha intervenção, enquanto membro da Direcção do SNESup, junto da seguradora com a qual o sindicato tinha contratado um Seguro de Saúde. Estes aspectos de saúde e exercício físico sempre mereceram a sua maior atenção, dando-lhe um invejável ar de juventude – o André também me falou da importância dos Health Clubs para a carteira de serviços a protocolar pelos sindicatos(iii).
No plano académico registo uma sessão julgo que de apresentação de uma História da UGT escrita por uma investigadora do IHC doutorada pelo ISCTE. No entanto André Freire sempre valorizou a acção dos sindicatos que se apresentavam como independentes e interveio uma vez, tanto quanto me lembro com Raquel Varela, numa reportagem – debate, creio que promovida pelo Público sobre o tema. E expressou um vivo entusiasmo pela primeira das grandes manifestações lançadas pelo S.TO.P em período ainda recente.
Refere, e muito bem, o texto dos deputados, a maioria do Partido Socialista, “tendo permanecido ao longo dos anos empenhado em diferentes instâncias da vida da Universidade”. Cabe lembrar que um aspecto em que muito se empenhou no ISCTE foi a contestação à criação das Universidades – fundação, uma iniciativa de Mariano Gago, apoiada pelo Partido Socialista.
Sem se possa dizer que conheça todas as áreas em que as opiniões de André Freire se confrontaram, muitas vezes de forma algo agreste, com outras, a minha percepção vai no sentido de constatar que em algumas situações mostrou capacidade de reavaliar a sua relação com os protagonistas da defesa de opiniões contrárias. O que se revelou muito importante.
Carreira académica
A comunicação social deu um merecido destaque à carreira académica de André Freire. Conheci-o em 2001 ou 2002, assistente no ISCTE numa situação precária – em substituição – e já doutorando em Sociologia Política no Instituto de Ciências Sociais, em instalações adjacentes mas integrado na Universidade de Lisboa. Pelos elementos que estão publicados concluiu o doutoramento em 2004 no ISCTE e passou a fazer parte do seu corpo de professores. Submeteu-se a provas de Agregação julgo que em 2010, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) da Universidade Técnica, que se viria a fundir com a “Clássica” na actual Universidade de Lisboa. Repare-se que embora o artigo sobre André Freire na wikipedia mencione o ISCTE como sua Alma Mater os seus títulos científicos são obtidos fora da instituição em que lecionava, ou seja fugindo ao inbreeding tantas vezes criticado em outras carreiras de professores universitários.
Foi também focado que o seu trabalho inicial deu um grande contributo para os estudos eleitorais. É o momento de dar pública nota e renovado agradecimento de que estando eu a trabalhar na minha investigação de doutoramento, desenvolvendo na área de Sociologia, especialidade de Sociologia Política, um projecto com o título O Progresso da Ideia de Gestão Empresarial na Administração Pública Portuguesa, que deu lugar a uma tese defendida no ISCTE-IUL em Março de 2013, pedi a André Freire que me facultasse alguns dos seus trabalhos, e assim pude transcrever na minha tese um excerto de um seu trabalho publicado em 2009 “Valores, Temas e Voto em Portugal, 2005 e 2006: Analisando Velhas Questões com Nova Evidência”(v)(vi). Assinalo que as suas investigações sempre lhe incutiram a convicção de que era muito tenaz o apoio da população portuguesa ao Estado Social, o que a evolução subsequente veio a comprovar.
Devem-lhe também estudos sobre sistemas eleitorais, um dos quais, lembro-me, foi elogiado publicamente pelo deputado do PSD – Madeira Guilherme Silva.
A carreira académica de André Freire – na área da Ciência Política – assentou também muito na internacionalização, não só na publicação de textos no estrangeiro mas também na participação em Congressos e Conferências. Aliás este investigador começou também a aparecer como promotor e editor de trabalhos colectivos.
Em todo o caso não deixei de ser crítico em relação à parte histórica(vii) do processo revolucionário português que deixou no trabalho conjunto com Luke March A esquerda radical em Portugal e na Europa – Marxismo, Mainstream ou Marginalidade?
Freire rodeia-se do maior cuidado na construção das afirmações, apoia-se em grande medida em memórias de dissidentes, assinala, com grande sagacidade, o papel pessoal de Mário Soares, mas fico sob a impressão de voltar a ler um grande número de lugares comuns da vulgata anti-PREC .
Nascido a 25 de Abril… de 1961, André Freire tinha 13 anos na altura em que triunfou a revolução do MFA. Não lhe tendo sido pessoalmente próximo, nada sei sobre a forma como viveu o pós – 25 de Abril.
Também nunca lho perguntei, e pesa-me não ter aproveitado as oportunidades de interacção que simpaticamente me ofereceu a partir da conclusão do meu doutoramento, como a assistência a iniciativas abrangidas pelo programa doutoral que ficou a coordenar, por exemplo a conferência em 2014 de Joana Amaral Dias, intitulada “O Cérebro da Política”(viii).
Foi muito positivo que tenha vindo a ascender no ISCTE – IUL a professor catedrático, um catedrático que, deve dizer-se, nunca estagnou.
Acção política
André Freire desenvolveu uma intervenção na comunicação social que poderemos qualificar de política veiculando teses basicamente formuladas na sua investigação académica(ix). Segui com alguma atenção o seu protagonismo como colunista no Público a partir de 2006 que incidiu basicamente sobre os períodos dos Governos de José Sócrates e da Troika(x), mas não a colaboração publicada no Jornal de Letras e as presenças televisivas.
A defesa do Estado Social e a denúncia da “doxa neoliberal”, bem como a necessidade de convergência dos partidos de esquerda, foram insistentemente veiculados nesses artigos ou em manifestos subscritos pelo autor, muito embora, no que diz respeito a convergência de esquerda, se tratasse de um campo altamente “minado”(xi). Com muito maior complexidade no terreno autárquico: tive ocasião de no mural de facebook do autor intervir, contra a posição deste, em defesa da atribuição, pela nova presidência comunista da Câmara de Loures de pelouros a vereadores do PSD, um dos quais, tendo esgotado o limite de mandatos como Presidente das Caldas da Rainha, se fizera feito eleger por Loures. Os acontecimentos recentes neste concelho sugerem-me aliás que a acção do Partido Socialista local criará sempre dificuldades à convergência da esquerda. Creio que em Lisboa André Freire procurou convergir com o PS, mas não acompanhei a experiência.
As notícias divulgadas aquando da morte de André Freire, referiram a sua participação das primárias do Livre / Tempo de Avançar, fórmula que agregou pontualmente o esforço do partido Livre para viabilizar a vontade de participação de numerosos independentes de esquerda, muitos deles com experiência política ou sindical anterior, e de modo geral intelectuais prestigiados, mas que não conseguiu eleger deputados à Assembleia da República. Em todo o caso, quando se configurou a “geringonça” foi um entusiasta seu e alimentou o mural de A Vaca Voadora. O projecto do voto de pesar subscrito pelos deputados de esquerda dá entretanto, e bem, relevo à sua colaboração com as mais recentes campanhas eleitorais do Bloco de Esquerda, posteriores à ruptura da dita “geringonça”. O Bloco tem assumido a qualificação de radical, que decorre da tipologia de Luke March, e espero que neste país politicamente pouco culto daí não lhe resultem prejuízos.
Associarei para sempre no meu espírito André Freire e Facebook. Por um lado foi ele que me levou a “aderir” a esta então relativamente nova rede social, por outro admirei o seu savoir faire de comunicador.
Pelo que percebi incentivava os seus estudantes a segui-lo, o que funcionava por ser um professor respeitado, mas não deixava de prometer a eliminação de quem não se soubesse comportar. E sempre vincou que no seu mural tinham de se seguir as suas orientações.
Doseava sabiamente as referências a eventos académicos, nacionais e estrangeiros, em que participava, e à sua vida pessoal, sobretudo no cenário do Sudoeste Alentejano(xii). Não deixou de tratar situações da actualidade política municipal, nacional e internacional e tinha sempre pronto o comentário crítico relativo a quem considerasse merecê-lo, como foi o caso da académica que propôs financiar encargos derivados da pandemia com a tributação da burguesia do teletrabalho e da primeira nomeação para comissário das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. Seguimos também os momentos do referendo local na freguesia de Benfica sobre estacionamento. Ultimamente começara a publicar referências a teatro e artes plásticas, partilhando momentos de felicidade e enriquecimento pessoal.
Confesso que nas últimas semanas procurava insistentemente o mural do André para tentar perceber a sua sensibilidade em relação às eleições municipais de Lisboa de 2025, e mais recentemente o seu olhar sobre as acções de incêndio de veículos que tinham atingido especial incidência na freguesia de Benfica.
A sua morte foi uma surpresa e não podemos pensar nela sem um sentimento de perda.
Notas
(i) Fê-lo António Carlos Santos ao ser nomeado em 2015 Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais do Governo I Guterres, incluindo na nota curricular para publicação a sua qualidade de membro do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa.
(ii) Em todo o caso a minha abordagem do tema não é exactamente sobreponível à de André Freire: Os “permanentes” sindicais e os custos da democracia: a propósito de um artigo de André Freire
(iii) Assim sendo foi com grande perplexidade e tristeza que fui lendo notícias dispersas, não inteiramente compagináveis, sobre as circunstâncias da sua morte.
(iv) A contratação em substituição não constava do ECDU mas de diploma avulso; quando Mariano Gago em 2005 promoveu a revisão deste recusou-se a acautelar a situação embora na legislação sobre investigadores tenha disposto sobre o contrato de trabalho a termo incerto; duas advogadas de Viana de Castelo tentaram na altura garantir os direitos dos docentes em substituição.
(v) Em Lobo, Marina Costa e Pedro Magalhães (editores), As Eleições Legislativas e Presidenciais 2005-2006 – Campanhas e Escolhas Eleitorais num Regime Semipresidencial, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais.
(vi) Devidamente advertido pelo autor de que não deveria deixar de comprar os seus livros…
(vii) Apontamentos políticos: lugares comuns sobre o PCP de 74/75 e algumas outras críticas
(viii) “O Cérebro da Política”, uma conferência de Joana Amaral Dias
(ix) O que à partida se revelava potencialmente arriscado, mas que, no caso de André Freire se poderá dizer ter corrido bem A intervenção cívica dos académicos
(x) Muito recentemente publicara no Público um artigo sobre a situação vivida em França posteriormente às legislativas, aliás aquele jornal deu a notícia da sua morte apresentando-o como seu colunista.
(xi) Apontamentos políticos: a difícil esquerda a três
(xii) Não esquecendo a Violeta e a Luna.