Professora de Ciência Política na Universidade Católica moçambicana, Elisabete Azevedo-Harman é profundamente conhecedora da situação política moçambicana, e em 2013 publicou o livro com o título “De Inimigos a Adversários Políticos? O Parlamento e os Parlamentares em Moçambique”.
Elisabete espera que a diplomacia portuguesa “não amue” com a questão da presidência da CPLP porque o importante a todos se juntarem no apoio a António Guterres. E, sobre o processo de paz moçambicano defende um papel importante para Angola.
Publicamos, hoje, a 1ª parte da entrevista
Jornal Tornado – Tem havido oposição a que Portugal ocupe a presidência rotativa da CPLP. Esta questão não é um mau sinal para a organização?
Elisabete Azevedo-Harman – Ao contrário de duas outras organizações internacionais que reúnem países que falam a mesma língua, a Commonwelth e a Francofonia, cuja origem foi da iniciativa do ex-colono para tentar manter uma ligação com as ex-colónias, no caso da CPLP isso não aconteceu.
Na constituição da CPLP teve um papel fundamental o então embaixador brasileiro em Portugal, José Aparecido de Oliveira. Foi um dos seus principais impulsionadores e quer o Brasil quer Angola tiveram sempre um papel fundamental.
Por vezes a opinião pública dentro dos PALOP, vê a CPLP como uma tentativa de Portugal manter uma mão nas ex-colónias. Ora, a CPLP não surge com esse propósito, até porque os países africanos, bem como o Brasil, sempre tiveram um papel fundamental nesta organização, designadamente Angola.
De acordo com observadores que acompanharam a criação da CPLP, a contrapartida invocada de que Portugal, por ter a sede da organização, jamais poder deter a presidência, nunca foi colocada.
Se foi colocada não foi por escrito. Pode ter havido um acordo de cavalheiros mas por escrito não. E essas coisas nunca ficam assim. Mas não daria grande importância à questão diplomática de Angola em relação à presidência ser portuguesa ou não.
Para mim o mais importante é o apoio da CPLP à candidatura de António Guterres a secretário-geral das Nações Unidas. Isso é que é fundamental, que os países de língua portuguesa se pronunciem a favor da candidatura de António Guterres.
Não por ele ser português, mas por ser um dos políticos de Língua portuguesa que está em condições de ser candidato a secretário-geral das Nações Unidas.
E a abertura da organização a outros países não a pode descaracterizar?
A organização cresceu, tem mais países, agora foi a República Checa que pediu também para ser observador. Há efectivamente o risco de perder a sua identidade.
Esta questão de alargar como fez a Francofonia e a Commonwelth tem os seus perigos. O bonito da CPLP era a sua dimensão: “The small is Beatifull”.
Percebo melhor a entrada da Guiné Equatorial do que a entrada de países que não sabemos bem quais vão ser as suas ligações.
A propósito da candidatura de António Guterres, acha que todos os países da CPLP vão apoiá-lo como foi apoiada a candidatura de Angola ao Conselho de Segurança?
Os países da CPLP no seio das Nações Unidas têm tido sempre uma postura de solidariedade e têm tomado posições comuns. Isso aconteceu relativamente à Guiné-Bissau.
Angola e Portugal estiveram sempre lado a lado nas decisões relacionadas com a Guiné-Bissau. Acho por isso que este pequeno episódio da liderança da CPLP não pode ser interpretado como um momento negativo, porque é legítimo que Angola questione, já que a sede da organização está em Portugal.
Nestas coisas da diplomacia acho que não devemos amuar. A história, mesmo a mais recente, tem demonstrado que os dois países nas Nações Unidas têm estado lado a lado.
Portugal tem apoiado Angola relativamente aos assuntos na Região dos Grande Lagos, aonde Angola tem tido uma supremacia, designadamente com a República Democrática do Congo, o Ruanda, etc.
Nem sempre temos que estar todos de acordo e é legítimo que os países africanos questionem se deve o país aonde se encontra a sede da organização presidir. Acho que se empolou demasiado esta questão.
O que é fundamental é que os países da CPLP, em assuntos muito concretos nas Nações Unidas, como por exemplo a missão das Nações Unidas na Guiné-Bissau, ou a candidatura de António Guterres, mantenham uma posição comum.
E relativamente a Moçambique. Este conflito Governo/Renamo tem recuo? É ou não um falhanço da comunidade internacional?
No final da guerra civil em Moçambique, o desespero da população era muito grande perante as suas consequências. Foi das guerras mais violentas, com um número elevado de refugiados.
A nossa memória já afastou essas imagens, designadamente a questão das minas.
Moçambique estava com o território completamente minado. Mais de 1 milhão de mortos, os refugiados deslocados fora do país, com infraestruturas completamente destruídas.
Havia esta urgência de fazer com que a paz chegasse e foi importantíssima a missão das Nações Unidas.
Agora, a Renamo e a Frelimo não quiseram, por interesse de ambos, falar do passado. Nunca falaram do passado decidindo-se antes por uma amnistia muito geral, já que não sabiam quem estava a ser amnistiado.
Relativamente ao passado decidiram que o que passou ficou para trás, mas na verdade não puseram uma pedra sobre o assunto. A aparente pacificação não passava dos discursos oficiais.
Por exemplo, nos debates parlamentares, sempre foi recorrente a utilização de uma linguagem de guerra civil. A guerra de palavras mostrava que não tinha sido colocada uma pedra sobre o assunto.
Mas a comunidade internacional falhou em matéria de desarmamento.
Houve algum insucesso na intervenção da comunidade internacional em matéria de desarmamento, obviamente que sim. Mas temos que contextualizar.
Em 1992 havia muitas frentes em África e na Europa de Leste a precisar da intervenção da comunidade internacional e esta região estava muito fragilizada.
Ainda não tinha acabado o Apartheid na África do Sul – que só acabou em 1994 –, o processo da África do Sul era acompanhado mas não se sabia ainda qual iria ser o seu desfecho. É injusto, por isso, fazer agora juízos de valor retirando os factos do seu contexto.
Podemos considerar um falhanço a intervenção da comunidade internacional?
Não diria que falhou, porque isso implicaria negligência, incompetência e ineficácia. Verificaram-se alguns insucessos.
O que foi possível ser feito na altura foi tentado, mas há várias coisas que não foram bem-sucedidas, como por exemplo, o desarmamento da Renamo, a inclusão transparente e inequívoca dos homens da Renamo nas Forças Armadas, na Polícia e nos Serviços Secretos. Este é, aliás, um dos grandes problemas.
As pessoas não falam nos Serviços Secretos e nas forças da Inteligência, mas o SISE (Serviços Secretos de Segurança do Estado) ficaram intocáveis até agora. E isso cria uma desconfiança na Renamo.
Em 1994, 1995 e 1996, já falei com algumas pessoas das Nações Unidas que na altura estavam em Moçambique da parte dos homens da Renamo, que tinham vivido em situações muito precárias nos 16 anos de guerra, havia um desejo enorme de deixar de ser força de segurança, tinham a expectativa de voltar à Chamba.
Houve também uma enorme dificuldade, nos postos mais baixos de integração dos homens da Renamo e também não foi acompanhado o processo de reconciliação. Porque neste processo de reintegração estamos a juntar os soldados que se tentaram matar uns aos outros.
Juntá-los na mesma estrutura sem que tivesse havido um processo de reconciliação, não resultou. Fez-se um processo de junção em vez de um processo de reconciliação.
Depois, de 1994 a 1999, quando eles podiam ter redesenhado a Constituição, surgiu um outro problema: ambos os partidos, Renamo e Frelimo, achavam que iam ganhar as eleições seguintes, em 1999. Foi uma eleição em que os resultados dos dois partidos andaram muito próximos.
O desenho constitucional que existe, presidencialista com uma presidência forte, com poderes absolutos – o Presidente não responde perante o Parlamento, demite e nomeia quem quiser sem ter de ouvir quem quer que seja. Esse desenho constitucional foi pensado e foi da vontade dos dois partidos.
E foi uma oportunidade perdida, tanto para avançar com um plano de descentralização, como com um sistema presidencial muito mais equilibrado. Isso teria provavelmente acontecido se os dois principais partidos tivessem dúvidas da sua vitória eleitoral.
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- Espírito de coesão nacional
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