Novo comunicado da Amnistia Internacional sobre a seca em Angola, que tem feito com que milhões de pessoas enfrentem a fome e procurem refúgio na Namíbia.
O comunicado explica os impactos da seca, que persiste há mais de 3 anos, na escassez de alimentos e água e consequente fuga da população, que tem vindo a procurar refúgio na Namíbia. Revela ainda como a instituição de fazendas comerciais de criação de gado tem afastado a população local das suas terras, colocando-a em insegurança alimentar, e ajudado a contribuir para a atual frágil situação humanitária.
Milhões de pessoas no sul de Angola enfrentam ameaças à sua existência, em consequência de uma seca – agravada pelas alterações climáticas -, que continua a devastar a região, declarou a Amnistia Internacional.
A organização destacou como a criação de fazendas comerciais de gado em terras comunitárias expulsou as comunidades pastoris das suas terras desde o fim da guerra civil em 2002 – uma mudança que deixou grandes setores da população em situação de insegurança alimentar e abriu caminho para uma crise humanitária, com a seca aguda a persistir por mais de três anos consecutivos. À medida que a comida e a água ficam cada vez mais escassas, milhares viram-se obrigadas a fugir das suas casas e a procurar refúgio na vizinha Namíbia.
“Milhões de pessoas no sul de Angola estão no limiar da morte pela fome, entre os efeitos devastadores das mudanças climáticas e o desvio de terras para a pecuária comercial”, disse Deprose Muchena, diretor da Amnistia Internacional para a África Oriental e Austral.
“Esta seca – a pior em 40 anos – atingiu comunidades tradicionais que lutavam para sobreviver desde que foram despojadas de vastas áreas de pastagem. O governo angolano deve assumir a sua responsabilidade nesta terrível situação, e garantir reparações às comunidades afetadas, bem como tomar medidas imediatas para resolver a insegurança alimentar nas áreas rurais das províncias do Cunene e Huíla.”
De acordo com a Associação Construindo Comunidades (ACC), uma ONG local, as famílias da pastorícia tradicional do município de Gambos, na província da Huíla, estão a passar fome. A ACC relatou que dezenas de pessoas morreram de subnutrição desde 2019, com pessoas mais velhas e crianças em situação particularmente vulnerável. A ACC, que distribui cestas de alimentos na região, indicou que as pessoas recorreram ao consumo de folhas para sobreviver.
Fugindo da fome
Os habitantes das províncias do Cunene e Huíla foram especialmente atingidos pela persistente seca. A época das chuvas de 2020/21 foi anormalmente seca, o que significa que a situação deve piorar muito nos próximos meses. De acordo com o Programa Alimentar Mundial (PAM), a falta de chuvas no período de novembro de 2020 a janeiro de 2021 já causou a pior seca dos últimos 40 anos.
A seca tornou a vida das comunidades pastoris tradicionais muito difícil e a fome levou milhares a atravessar a fronteira com a Namíbia desde o início de março de 2021, de acordo com a Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho (FICV).
A IFRC relatou que as autoridades locais da Namíbia registaram um total de 894 cidadãos angolanos nas regiões de Omusati e Kunene em março de 2021. A 14 de março de 2021, a Namibian Broadcasting Corporation relatou que um grande número de famílias pastoris das províncias de Huíla e Cunene haviam abandonado as suas casas para procurar refúgio no norte da Namíbia. Em maio de 2021, ONG angolanas relataram que mais de 7.000 angolanos, principalmente mulheres com crianças e jovens, haviam fugido para a Namíbia, e o número ainda está a aumentar. As ONG angolanas referiram-se aos que fogem para a Namíbia como “refugiados climáticos”, para chamar a atenção para o facto de a seca e a falta de recursos no sul de Angola os levarem a migrar para a Namíbia como uma medida desesperada para sobreviver.
O Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC) observou que “a frequência e intensidade das secas aumentou em algumas regiões”, incluindo na África Austral desde os níveis pré-industriais devido ao aquecimento global e que “a frequência e intensidade das secas estão projetadas para aumentar particularmente na região do Mediterrâneo e na África Austral”.
Ocupação de terras
A situação nas províncias da Huíla e do Cunene era já precária mesmo antes da seca. A insegurança alimentar aumentou, em parte devido ao desvio de pastagens comunitárias para agricultores comerciais, o que tem acontecido ao longo das últimas duas décadas, depois da guerra civil. Em 2019, a Amnistia Internacional expôs como o governo angolano desviou pastagens comunais nos Gambos para criadores de gado comerciais sem seguir o devido processo jurídico.
De acordo com o governo, 67% das pastagens no município de Gambos foram ocupadas por criadores de gado comerciais. Isso inclui grandes partes do Vale de Chimbolela, conhecido pelos pastores como “o berço do gado”, e da Tunda dos Gambos, os campos de pasto comum para os pastores da região. No seu relatório de 2019, intitulado O fim do paraíso do gado (em inglês – The end of cattle’s paradise), a Amnistia Internacional mostrou como a ocupação de terras mais férteis por explorações pecuárias comerciais impediu o acesso a pastagens de qualidade e, portanto, comprometeu a resiliência económica e social das comunidades pastoris, minando a sua capacidade de produzir alimentos e sobreviver às secas.
Impacto das alterações climáticas sobre a fome
A Amnistia Internacional visitou as comunidades pastoris tradicionais no município dos Gambos, província da Huíla, em 2018 e 2019. Os investigadores puderam presenciar, em primeira mão, à luta para produzir alimentos, e documentaram, por exemplo, o impacto adverso nas mulheres enquanto suportam o ónus do cultivo da terra, tendo ainda à sua responsabilidade cuidar dos doentes e das crianças. Têm também que percorrer longas distâncias (cerca de 10 km) para vender lenha e assim poder comprar alimentos.
Passados três anos, a seca não dá qualquer sinal de alívio.
O PAM observou que, como consequência direta da seca, a subnutrição atingiu níveis nunca antes observados e o acesso à água, saneamento e higiene está cada vez mais precário, com impactos negativos na saúde e nutrição das comunidades locais.
Em maio de 2021, o PAM estimou que 6 milhões de pessoas em Angola tinham alimentos insuficientes, sendo a insegurança alimentar mais preponderante no sul do país. Notou também que mais de 15 milhões de pessoas se veem obrigadas a utilizar estratégias de sobrevivência reservadas para cenários de crise ou emergências, tais como gastar as suas poupanças ou reduzir despesas não-alimentares.
A Amnistia Internacional apela às autoridades angolanas e à comunidade internacional para que intensifiquem os esforços de auxílio, incluindo o fornecimento regular e sustentado de assistência alimentar de emergência e acesso a água potável e segura para uso doméstico e consumo nas áreas rurais das províncias do Cunene e Huíla.
“A situação no sul de Angola recorda-nos viva e penosamente de que as alterações climáticas já estão a causar sofrimento e a matar. A comunidade internacional, e especialmente os países mais ricos e os principais responsáveis pela crise climática, devem tomar medidas imediatas para cumprir suas obrigações de direitos humanos, reduzindo urgentemente as suas emissões poluentes e proporcionando a assistência financeira e técnica necessária ao governo e à sociedade civil local para lhes permitir apoiar as comunidades impactadas”, realçou Deprose Muchena.
“Além disso, as autoridades angolanas devem parar de desviar terras das comunidades tradicionais nas zonas rurais das províncias do Cunene e da Huíla. Devem também assegurar que os responsáveis pela concessão de terrenos de pastagem comunitários aos fazendeiros sejam responsabilizados.”