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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

António Borges Coelho

Helena Pato
Helena Pato
Antifascistas da Resistência

(N. 1928)

Nasceu em Murça (Vila Real), a 7 de Outubro de 1928. O seu percurso de vida caracterizou-se, até hoje, por uma intensa actividade cívica e académica. Antes da vida de historiador (Professor, investigador, escritor) que actualmente o torna conhecido, teve uma vida de total entrega à luta contra o salazarismo. António Borges Coelho, o historiador com grande prestígio, o antifascista que não abdica do investimento pessoal na preservação da memória da Ditadura, é o professor de quem os alunos ficaram amigos, é o amigo que se admira pelas qualidades raras de coerência de princípios, pela simplicidade e humildade. É um cidadão com uma vida exemplar, que diz de si mesmo:

Nós vivemos errando, a nossa identidade é forjada pela memória;
Sinto-me bem com a minha consciência;
É difícil meterem-me numa forma, política ou não política;
É preciso dizer não para que a água da vida corra limpa;
Viver é uma maravilha, mesmo havendo dias cinzentos»

Foi preso em 1957, como militante e funcionário do Partido Comunista Português na clandestinidade. Saiu da cadeia de Peniche (onde casou com Isaura Borges Coelho) em 1962. Dois anos depois chega às livrarias a primeira grande obra deste historiador: «Raízes da expansão portuguesa». Segue-se «A Revolução de 1383».

Homem com uma vida repleta de experiências e diversas obras de vulto na historiografia nacional, Borges Coelho marcou na docência diversas gerações de alunos.

Intensa actividade académica

Licenciado em Histórico-filosóficas (1967), é hoje um dos historiadores portugueses mais prestigiados. Catedrático jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, participou em numerosos júris de provas de mestrado, de doutoramento e de agregação e orientou inúmeras teses de mestrado e de doutoramento.

Autor de uma vasta e riquíssima bibliografia (em que se incluem também a poesia, o teatro e a ficção), participou em diversos congressos e reuniões científicas, nomeadamente em Espanha e no Brasil. Foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem de Santiago e recebeu o Prémio da Fundação Internacional Racionalista. Deu a sua “Última Lição” em 1998, mas continua a dedicar-se com o mesmo entusiasmo à investigação e à divulgação daquilo que não é possível dissociar do seu nome: a História. Nos anos mais recentes, vem publicando uma “História de Portugal”: I Donde Viemos; II Portugal Medievo; III Largada das Naus; IV Na Esfera do Mundo; V Os Filipes; VI Da Restauração ao Ouro do Brasil (2017). [ ver obras abaixo]


«Combinação do homem de pensamento com o homem de acção;
Todos o respeitam e respeita todos;
Por onde passa deixa uma chama de Liberdade;
Em História, vai buscar sectores sociais que habitualmente não apareciam, traz a arraia-miúda para a primeira linha da História;
No discurso historiográfico não segue os cânones, persegue o rigor e o prazer da palavra.»

– dizem alguns colegas e amigos, que enaltecem a sua brilhantíssima inteligência, o grande carácter, a invulgar coerência no seu percurso cívico e político, a grande humildade e a sua afabilidade. Falam do cidadão profundamente livre, da sua coragem e civismo. Admiram-no por, nos seus 90 anos, não abandonar um mundo de utopia.

«Um catedrático verdadeiramente modelar, um homem com uma dimensão humana única, extraordinária
um humanista no sentido menos abstracto do termo, em contínua luta pelos direitos humanos, sem esmorecimentos, sem amargura, sem desespero»

– referem outros.

Intensa actividade cívica

Borges Coelho, em criança, quis ser pastor, guardar cabras da casa da família, o que fazia quando regressava da escola. Marcado pelo sofrimento que via à sua volta e por livros que o fascinaram, – Crónica de D. João I de Fernão Lopes (Insurreição de Lisboa) – escolheu ser padre franciscano e ninguém o demoveu de seguir esse caminho. Entrou para o seminário. Em 1945, no fim do 5º ano, aluno de excelente classificações, muito atraído pela escrita, escreve uma História da Literatura Grega e poemas. Dá-se conta de que aquele mundo não era o seu e tenta fugir, o que determina a sua expulsão do seminário. Essa experiência marca-o muito, pela opressão vivida. A recusa do mal que ali se sentia revolta-o e «contribuiu para a sua insubmissão, qualquer insubmissão política ou não política»

Borges Coelho com Manuel Alegre, Carlos Brito e José Manuel Mendes, na apresentação do livro “Álvaro Cunhal – sete fôlegos do combatente”, de Carlos Brito (2010)

Nos finais dos anos 40 vai para Lisboa, inscreve-se na faculdade, mas influenciado pelo ambiente social de miséria, por leituras e por colegas do MUD Juvenil, sai da faculdade logo no 2º ano, para se dedicar exclusivamente à política. Surge como poeta de grande impacto entre a juventude.Entra para funcionário do MUD Juvenil e, depois, do PCP. Passa fome, vive em condições muito precárias, mantém a ambição literária e da escrita, mas dá prioridade à luta. Anos depois, em 1956, quando chega a dirigente do PCP, é preso, condenado em Tribunal Plenário e fica 6 anos na cadeia, dos quais 6 meses no isolamento. Escreve então um poema à namorada, que é decorado e recitado em todas as festas de jovens antifascistas: «Até logo».

A meio da pena, casou-se no Forte de Peniche com a namorada Isaura (até hoje sua grande companheira) – que havendo sido presa em 1953, e ficado vários anos na prisão de Caxias, não tinha autorização para o visitar ou escrever. Um casamento em que esteve separado por um vidro de todos os amigos presentes na “festa” que durou uma hora. Na sequência da fuga de Peniche, em 1960, (fuga em que opta por não entrar porque já decidira vir a retomar a investigação), é castigado e enviado para o Aljube e, então, submetido à tortura de «estátua». Fica numa cela (“curro”) durante 6 meses, em tal solidão (“vivendo apenas com a (sua) memória”) que chega a desejar ir a interrogatório para quebrar o isolamento. Mas, sempre firme no seu comportamento, nunca prestou quaisquer declarações. Regressa a Peniche, onde começa o seu trabalho de escrita como historiador, apesar de um regime apertado de proibições. Libertado, não volta à clandestinidade, decidindo terminar a licenciatura, sem nunca se afastar da luta.

Ouvi-lo é receber uma lição de vida.

Afirma que tem paixão pela História, pela Filosofia e pela escrita, mas que a sua vida foi marcada pela História. É sócio fundador do Movimento Cívico Não Apaguem a Memória (NAM). Em 2014, discursou em nome do NAM na sessão de Homenagem aos Advogados dos presos políticos do regime fascista, que foi promovida por esse Movimento na Assembleia da República.

Homenagem, a António Borges Coelho, do historiador José Mattoso

Ao lado de Isaura Borges Coelho, a grande companheira da sua vida, com quem casou na prisão. Homenagem a António Borges Coelho em Murça, 2014

Numa homenagem a A. Borges Coelho, em Mértola, em 2007, o historiador José Mattoso fez um discurso que não podia retratá-lo melhor, no seu percurso de vida:

No princípio da sua vida adulta arriscou a vida e a liberdade lutando contra a ditadura salazarista. Não virou a cara às agressões da tortura, da humilhação, da violência física e da prisão.

Por isso pôde falar, ainda há poucos meses, em nome das vítimas do tribunal da Boa Hora da época salazarista, «gravemente ofendidas na sua dignidade e no seu próprio corpo», e dizer que é preciso avivar a memória e lembrar as «mulheres e homens que nada tinham senão o corpo e a mente, e indicavam, com o seu sacrifício, que há momentos em que é preciso dizer não para que a água da vida corra limpa». Desprezou o cerco das ameaças, da marginalização e da vigilância da PIDE, viveu do seu trabalho como jornalista, e, sem bolsas, sem ajuda de ninguém, fez o seu curso de Histórico-Filosóficas.

Pedimos-lhe, enfim, professor Borges Coelho, que aceite esta homenagem por ter alcançado o mais alto lugar na hierarquia universitária, e por ter, como mestre, orientado, ajudado e encorajado muitos alunos e discípulos a desenvolver as suas capacidades. E ainda que a aceite por não ter esquecido os seus compromissos e o seu respeito pela cultura popular, por ter demonstrado sempre, na vida pública, uma atitude de clara e inteira responsabilidade cívica.

Prestamos-lhe, portanto, uma homenagem. No sentido que a palavra tem actualmente, a homenagem representa o reconhecimento público do mérito de alguém. Os méritos não faltam, na verdade, ao professor Borges Coelho. Enunciei aqueles que parecem mais verdadeiros e mais relevantes a quem se reuniu aqui nesta sala, para nela participar. Reconhecemo-los e proclamamo-los em alta voz, para que aquele a quem se dirigem tenha a certeza de que mereceu a pena enfrentar riscos e humilhações que só lhe fortaleceram a dignidade, mereceu a pena consagrar longas horas à investigação e à docência, mereceu a pena cultivar a força transfiguradora e simbólica da palavra poética e dramática. E, reciprocamente, para que, tendo recolhido os dons que ele com tanta generosidade espalhou no seu caminho, tomemos consciência do que dele recebemos, para medirmos a responsabilidade que da nossa parte devemos assumir, para proteger, cultivar e fazer frutificar a semente que com a sua vida lançou à terra.

O que neste momento fazemos tem alguma coisa de ritual de passagem. A luta, o trabalho e a acção criativa do professor Borges Coelho foram-se desenrolando ao longo de muitos anos. Eu, como menos cinco do que ele, sinto-me já, também, na fase dos balanços e da passagem de testemunho. Dou graças à vida (e creio que ele também), por me ter proporcionado alguns sucessos. Um daqueles que me é mais grato, e creio que a ele também, é o de perceber, em ocasiões como esta, que os nossos valores devem ser entregues a outras mãos, e que quem os percebe e recebe deve, por sua vez, transmiti-los a outros que deles façam semente de vida, de dignidade, de alegria e de liberdade. As palavras de agora destinam-se a conferir a este ritual a intensidade possível, para que ele fique gravado no nosso coração e na nossa memória e sirva de penhor a quem o guarda em si, para escolher, sem medo, o lugar justo nos combates de amanhã.

É neste sentido de ritual de passagem que estamos aqui para lhe prestar homenagem. Ocorre-me lembrar que a palavra, no seu sentido original, significava a cerimónia por meio da qual os cavaleiros se tornavam «homens» de um senhor, ou seja, seus vassalos. Reconheciam a sua condição e prometiam fidelidade. Apesar de esta comparação parecer incompatível com a acepção anterior, creio que afinal serve para reforçar o que com ela queria dizer. Não queremos, evidentemente, ser os vassalos de ninguém. Mas queremos, sem dúvida, ser solidários com o professor Borges Coelho, seguir os seus exemplos, lutar pelos mesmos valores, prolongar a sua obra. Ora ela contrasta de tal modo com os procedimentos que no nosso tempo se impuseram na vida profissional, na política, na vida pública e na educação, que só podemos imaginar uma atitude de combate para quem se sente do mesmo lado que ele. Não somos seus vassalos, nem seus cavaleiros, mas somos da sua família. Prestamos-lhe esta homenagem para afirmar isso mesmo.

Se comecei por enumerar as suas qualidades não foi para fazer o elogio que, na verdade, merece. Foi para dizer que esta cerimónia representa, da nossa parte, um compromisso: o de não nos conformarmos com as injustiças da sociedade em que vivemos, nem com a mediocridade que tantas vezes é garantia de sucesso, nem com as promessas de vantagens que corrompem e escravizam. Para dizer que representa, sobretudo, o compromisso de não ceder ao medo com que o frenesim da acumulação capitalista nos ameaça, ao projectar por todo o lado, não só nas empresas, mas também no sector público, nas escolas, na comunicação social, e até no mundo das artes, o fantasma asfixiante do medo – o medo dos despedimentos, o medo do desemprego, o medo da denúncia, o medo de ser diferente.

Queremos agradecer ao professor Borges Coelho ter-nos mostrado o caminho certo, seja o do combate frontal como o que ele travou na sua juventude, seja o da conquista de uma posição a partir da qual possamos fazer ouvir a nossa voz, como ele fez também, subindo, pela sua competência científica e a sua autoridade moral, ao topo da carreira universitária.

Queremos agradecer-lhe ter tido a coragem de, com risco da própria vida, militar no combate revolucionário de assim contribuir para eliminar um regime opressor e injusto.

Queremos agradecer-lhe ter feito da História uma demonstração de que o destino de Humanidade se decide de muitas e variadas formas, mas sobretudo no campo da luta de classes. Por isso estudou os vestígios concretos da cultura árabe entre nós, e demonstrou que a cultura nacional, longe de ter destruído os seus vestígios, os tinha incorporado sob a forma de técnicas de produção e trabalho próprios das classes trabalhadoras, e que elas representam a resistência popular à dominação aristocrática e burguesa. Por isso disse algures que «a luta social só perde o canto das armas nos braços que empurram a prensa, nos pés que calcam as uvas antes do mosto, nos troncos curvados ceifando as espigas».

Queremos agradecer-lhe ter demonstrado a falsidade da representação da história portuguesa como uma secular cruzada contra o Islão, e ter denunciado a iniquidade dos processos usados pelas instituições eclesiásticas que invocavam a fé para espalhar a destruição e a morte. Foi o que ele exprimiu quando perguntou: «Nas pinturas do Apocalipse de Lorvão, é a espada ou a cruz que corta as cabeças? Símbolo humano de redenção e sacrifício, a cruz virou espada que retalha e sacrifica, que abre os braços e logo crava o ferro». Por isso estudou a Inquisição de Évora, que, em nome da mesma cruz, esmagava o pensamento, espalhava o terror e a delação, e impedia o desenvolvimento cultural e económico.

Queremos, enfim, agradecer-lhe por não ter deixado que as marcas da repressão e tortura de que foi vítima, em vez de se traduzirem em ódio, antes desabrochassem em celebração da vida pela palavra poética, pela amizade do convívio, pela ironia bem humorada, pela disponibilidade e o optimismo. Às vezes, como dizia em nome do movimento Não apaguem a memória!, «é preciso dizer não para que a água da vida corra limpa». Outras vezes, porém, como esta em que estamos aqui e agora, ao celebrar, com toda a alegria e com todo o afecto, este ritual de passagem, queremos dizer «sim», para que a mesma água da vida continue a correr limpa, ainda para além da morte.»

  • Roseira Verde (1962)
  • Raízes da Expansão Portuguesa (1964)
  • O 25 de Abril e o Problema da Independência Portuguesa
  • A Revolução de 1383 (1965)
  • Ponte Submersa (1969)
  • Portugal na Espanha Árabe (1972-1975)
  • Comunas ou Concelhos? (1973)
  • Fortaleza (1974)
  • No Mar Oceano (1981)
  • Questionar a História (1983)
  • A Inquisição em Évora (1987)
  • Os Nomes das Ruas (1993)
  • Ao Rés da Terra (poesia) (2002)
  • História de Portugal I – Donde Viemos (2010)
  • História de Portugal II – Portugal Medievo (2010)
  • História de Portugal III – Largada das Naus (2011)
  • História de Portugal IV – Na Esfera do Mundo (2013)
  • História de Portugal V – Os Filipes (2015)
  • História de Portugal VI – Da Restauração ao Ouro do Brasil (2017)

 

Raízes da Expansão Portuguesa teve a 1ª edição em 1964 e acaba de ter uma 6ª edição (Editora Caminho, 2018)

 

A Inquisição em Évora (1987)

 

História de Portugal VI – Da Restauração ao Ouro do Brasil (2017)

 


Dados biográficos:

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