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Domingo, Dezembro 22, 2024

António Carlos Santos e a viragem na gestão do sistema fiscal (1995-1999)

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Foi pouco noticiado o falecimento, em 19 de Junho, aos 75 anos, de António Carlos Santos, Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais do Ministro das Finanças Sousa Franco.

Uma breve visão do percurso pessoal e profissional

Seria certamente importante recordar o seu percurso pessoal e profissional, assaz invulgar, antes e depois de ter exercido funções como Secretário de Estado. Escreveu-me uma amiga referindo “décadas de recordações comuns”, mas infelizmente apenas posso trazer para aqui:

  • a forma como este docente de Direito se foi relacionando com colegas da área científica de Economia, dominante no ISE / ISEG;
  • a grande capacidade de trabalho que lhe permitiu exercer, muitas vezes em simultâneo, funções na Administração e no Ensino Superior, tanto público como cooperativo ;
  • o gosto por escrever e publicar a partir dos campos em que ia tendo intervenção – pessoalmente recordo umas “lições” iniciais que lhe ouvi sobre a formação do direito do trabalho e do direito da família – e, mais tarde, a preocupação de enquadrar em termos mais amplos as propostas que foi fazendo relativamente à reforma da fiscalidade angolana; o seu trabalho como conselheiro colocado na REPER em Bruxelas, já depois do exercício de funções como Secretário de Estado, permitiu-lhe alargar e aprofundar a sua produção na área fiscal, no âmbito da qual preparou e defendeu o seu doutoramento.

Poucos saberão que durante este ultimo período António Carlos Santos foi aprovado em concurso por mérito para Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal Administrativo ao qual se tinha candidatado, tendo preferido, em vez de usufruir deste “topo de carreira”, continuar a desenvolver o seu projecto profissional / académico em Bruxelas. Recentemente, já aposentado da Administração Pública, vinha assegurando o julgamento de processos de arbitragem tributária no âmbito do CAAD.

 

Os primeiros tempos na Secretaria de Estado

A inauguração em 1995 de um novo ciclo político não tinha subjacente um programa totalmente definido para a área das Finanças e para a fiscalidade. A indicação de Sousa Franco para Ministro pode ter sido inspirada pela necessidade de António Guterres ter na pasta um referencial de integridade, mas algumas figuras da nova situação esperavam que as Finanças se deixassem gerir a partir do núcleo politico do Governo ou das outras pastas económicas, sendo que existindo barreiras legais e financeiras ao aumento das despesas, havia a expectativa de que fosse possível obter resultados políticos através do sacrifício de receitas. Entretanto, não tinha sido o Ministro a escolher os seus Secretários de Estado e António Carlos Santos nem sequer fora a primeira escolha para os Assuntos Fiscais, cujas competências alguns pensavam relevarem do Tesouro ou do Orçamento.

A primeira desagradável surpresa terá sido a inclusão no Programa do Governo entregue no Parlamento para debate, sem conhecimento do Ministério das Finanças, da aplicação da taxa reduzida de IVA à hotelaria e restauração. Uma medida do sector do Turismo…

Profundo conhecedor do enquadramento comunitário do IVA, o novo Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais evitou o choque politico através da criação de uma taxa intermédia, até aí nunca utilizada em Portugal. Com a consequência de desde aí os grupos de interesse passaram a ter mais uma alternativa para as suas propostas de jogarem com a taxa do IVA, mas isso já são outros contos.

Outras surpresas houve, mas de modo geral a Secretaria de Estado geriu bem a preparação e votação da Lei do Orçamento do Estado para 1996, negociando com o CDS a abertura à compensação de créditos e débitos a que já me referi em artigo anterior, promovendo toda uma série de novos ajustamentos à legislação fiscal, entre os quais – medida muito cara ao seu titular – o abatimento à matéria colectável do IRS de “ As quotizações sindicais, na parte em que não constituam contrapartida de benefícios relativos a saúde, educação, apoio à terceira idade, habitação, seguros ou segurança social” com a ressalva de que “Os abatimentos referidos … serão considerados na parte em que não excedam 1% do rendimento bruto da categoria A do sujeito passivo, sendo acrescidos de 50%.” – e, noutra direcção, a elevação do valor das aquisições de viaturas cuja reintegração poderia ser tratada fiscalmente como custo, medida gizada pessoalmente por quem, para além de conhecer o direito e as leis, conhecia a psicologia dos agentes económicos e sabia prever as suas reacções, e que fez de imediato disparar a receita em termos de fiscalidade automóvel.

 

Linhas de intervenção durante a legislatura

Julgo poder dizer que António Carlos Santos norteou sempre a sua intervenção dentro e fora do Governo pela defesa de que pagar impostos é um dever de cidadania, cujo cumprimento é essencial em democracia – defesa que partilhava com o Ministro Sousa Franco – mas também que o sistema fiscal, em que se haviam já introduzido os grandes impostos gerais (IVA e IRS /IRC) nos quais actualmente assenta – podia ser gerido sem agravamento de taxas em ordem a obter maior receita.

Curiosamente na altura já se faziam ouvir vozes que, perante um crescimento da receita denunciavam o aumento da carga fiscal. Ora o esforço que se impunha, e que foi desenvolvido ou pelo menos fortemente sinalizado na legislatura, era o de obstar à erosão da base tributável e de aumentar a produtividade do sistema fiscal.

Com risco de incorrer em alguma omissão pouco desculpável, enumerarei como aspectos mais significativos do trabalho realizado durante a legislatura:

  • a preparação e aprovação de uma Lei Geral Tributária, aplicável não apenas às receitas fiscais;
  • a preocupação de credibilizar a aplicação de métodos indiciários na determinação da matéria colectável de vários impostos e a de que mesmo as entidades empresariais com contabilidade pouco credível pagassem imposto: surgiu na altura a colecta mínima a que o Presidente do PSD, Marcelo Rebelo de Sousa, quis aplicar a pena máxima, hoje temos o também “odiado” pagamento especial por conta;
  • a indução de um novo tipo de intervenção da Inspecção Tributária, com nomeação de um responsável competente e altamente empenhado, que permitiu identificar sectores inteiros que não cumpriam a lei fiscal, e a cujos representantes institucionais houve que deixar claro que a teriam de cumprir para o futuro;
  • uma primeira tentativa de, com recurso a formadores especializados, tentar mudar a forma como a administração fiscal via os contribuintes e se relacionava com eles;
  • a criação do Fundo de Estabilização Tributária, paralelo ao Fundo de Estabilização Aduaneira já existente na Direcção-Geral das Alfândegas, incentivando a obtenção de resultados nas cobranças coercivas.

e também, o que encontrou resistências, o apoio à qualificação e responsabilização dos Técnicos de Contas, mais tarde Técnicos Oficiais de Contas – dotados de uma Câmara e posteriormente de uma Ordem – agora Contabilistas Certificados, colocando o País ao nível das melhores experiências estrangeiras onde o chartered accountant tem um papel de relevo, com natural impacto no cumprimento das obrigações tributárias.

A reestruturação da Administração Fiscal esteve também logicamente no âmbito das preocupações de António Carlos Santos e encontrou também cepticismo por parte daqueles que consideravam que a missão de Sousa Franco era dar execução ao “Relatório Silva Lopes”, popularizado na fase final do Governo anterior… (era conhecer mal o Ministro que tinha as suas próprias ideias e dinamizou mesmo um processo de levantamento da situação dos Tribunais Tributários). Chegou a ser ponderada uma reestruturação que criasse uma Direcção-Geral dos Impostos Directos e uma Direcção-Geral dos Impostos Indirectos mas acabou por se delinear um modelo em que a Direcção-Geral dos Impostos (onde permanecia o IVA) , a Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo e a Direcção-Geral de Informática Tributária e Aduaneira se articulariam sob a égide de uma Administração-Geral Tributária.

Todo este caminho gerou numerosas situações de stress com um primeiro-ministro que, pouco sensível à forma como entrava a receita, desde que lhe permitisse fazer despesa, o era muito aos títulos dos jornais económicos. Mas António Carlos Santos já se tinha tornado o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais da escolha de Sousa Franco.

 

Facilitar o cumprimento das obrigações tributárias

Aquando da Lei do Orçamento para 1996, o Artigo relativo ao Tesouro que tradicionalmente aparecia epigrafado como “Mobilização de activos e recuperação de créditos” e com os dizeres “O Governo fica autorizado, através do Ministro das Finanças, que terá a faculdade de delegar, a proceder às seguintes operações de mobilização de créditos, e outros activos financeiros do Estado” seguido de possibilidades tais como a conversão em capital, a alienação de créditos e o write-off puro e simples, apareceu em versão da Proposta de Lei já disponibilizada à comunicação social, com a interpolação “incluindo créditos de natureza fiscal”.

Isto não augurava nada de bom, uma vez que na fase final do ciclo de Cavaco Silva, o Tesouro já tinha “adquirido” centenas de milhões de contos de créditos da Segurança Social sobre empresas que manifestamente não se destinavam a ser cobrados, uma vez que nem sequer o endereço dos devedores havia sido comunicado ao Tesouro. Imperturbável, António Carlos Santos promoveu a inclusão a seguir à referência a créditos fiscais de “em termos a definir por decreto-lei” e de qualquer forma o artigo, que na Lei viria a ser o 59º, desde logo densificou algumas condições.

O diploma, publicado em Agosto de 1996, viria também a abranger, por proposta da Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais, todos os contribuintes com dívidas fiscais e à Segurança Social (inclusive aquelas cujos créditos tinham sido transferidos para o Tesouro). A palavra de ordem de António Carlos Santos era facilitar o cumprimento das obrigações tributárias, inclusive por dação em pagamento. FACILITAR o CUMPRIMENTO. Encorajando a adaptação da Direcção-Geral dos Impostos ao novo quadro, a articulação, com o apoio do Ministro, entre a Direcção-Geral dos Impostos e a Direcção-Geral do Tesouro no quadro da Comissão de Análise dos Processos de Recuperação de Créditos então criada, as reuniões semanais de coordenação no Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, a ligação com o Gabinete de Coordenação para a Recuperação de Empresas (GACRE). Houve pressões e tentativas de interferência, mas mesmo quando achava necessário relatá-las nunca adiantou qualquer sugestão de que fossem acatadas. No fim da legislatura as bolsas de incumprimento estavam a ser identificadas e atacadas sistematicamente.

António Guterres teve a possibilidade de escolher livremente a equipa para a sua segunda legislatura e não é este o lugar para fazer a análise desta. Mas a prazo a viragem protagonizada em 1995-1999 por António Carlos Santos e Sousa Franco acabou por se consolidar.

 

Jornal de Negócios de 19-6-2020: “Morreu antigo secretário de Estado António Carlos dos Santos

Ver também Comunicado da Ordem dos Contabilistas Certificados, no site da Ordem: Faleceu António Carlos dos Santos, ex-membro do Gabinete de Estudos da Ordem

O nosso conhecimento estreitou-se quando aceitou fazer parte da Comissão Sindical (SPGL) do então Instituto Superior de Economia.

Para além de ter sido no início da sua actividade principal delegado do Ministério Público (mas nunca “advogado”, gostava de realçar), e mais tarde Chefe de Gabinete de António Costa Leal quando este exerceu no ciclo dos Governos Provisórios vários cargos governamentais.

Esteve ligado numa fase inicial à reconfiguração do ISPA de entidade instituída por congregações religiosas para entidade gerida por uma cooperativa de docentes e não-docentes e na parte final da sua vida académica esteve activamente envolvido na Universidade Autónoma de Lisboa.

O que escrevo neste artigo corresponde naturalmente às minhas percepções pessoais. Situando-me na área de Finanças Públicas sem ser fiscalista, encontrava-me em S. Tomé e Príncipe a ministrar duas acções de formação quando o Governo se constituiu. António Carlos Santos convidou-me depois do meu regresso para Adjunto do Gabinete e mantive durante a legislatura com a Secretaria de Estado um relacionamento profissional em modalidade que teve de ser alterada quando fui nomeado Conselheiro Técnico do Gabinete do Ministro.

Algum tempo depois o Secretário de Estado do Turismo autor desta parte do Programa do Governo cessaria funções e daria novamente ensejo a que se falasse de si inscrevendo-se num Centro de Emprego.

Lei nº 10-B/96, de 23 de Março (Orçamento do Estado para 2016).

Tive ocasião de me pronunciar na altura sobre esta problemática, mas não é este o local para desenvolver a reflexão que apresentei. Manuela Ferreira Leite extinguiu a Administração-Geral Tributária mas as três Direcções-Gerais acabariam por ser fundidas na actual Autoridade Tributária e Aduaneira.

Julgo que na origem desta iniciativa do então Secretário de Estado do Tesouro e Finanças Teixeira dos Santos estaria a preocupação do então Ministro da Economia Daniel Bessa viabilizar uma operação de alienação de créditos públicos sobre a Torralta que favorecesse a transferência de titularidade desta.

Decreto-Lei nº 124/96, de 10 de Agosto.

E aqui estávamos ambos certos de ter o apoio de Sousa Franco que proferiu vários despachos em momentos cruciais. Tivemos vinte anos depois uma troca de recordações sobre as tentativas de interferência.

 


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