A frase proferida por António Costa, ontem, durante um jantar com militantes do Partido Socialista, em Coimbra, é reveladora do entendimento que o actual secretário-geral do PS faz da política.
Depois de elencar todas as reposições de salários e direitos dos trabalhadores que haviam sido esbulhados por Passos Coelho e nesta legislatura restituídos pelo Governo, António Costa crê que o país lhe devia estar agradecido.
É uma noção perversa da política e do que é o serviço Público. Vinicius de Moraes, no poema “Operário em Construção”, expõe de forma cristalina o vício de que enferma este modo de pensar:
Operário em Construção
por Vinicius de Moraes
… De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
– Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.
Disse, e fitou o operário
(…)
E o operário disse: Não!
– Loucura! – gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
– Mentira! – disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.
Se António Costa fosse um homem realmente de esquerda teria este saber no seu ADN. Mas não é. António Costa é um político pouco dado à ideologia. Ou melhor, a sua ideologia é o Poder pelo Poder. Algo outrora designado por Realpolitik.
Apertado entre a agenda que usou para aliciar os parceiros parlamentares a aprovar-lhe os quatro orçamentos, por um lado, e a ala direita do PS encabeçada por César (que já empregou a família toda), por outro, Costa fez o que Costa sempre faz. Fugiu para a frente. Empurrou com a barriga. Arranjou um pretexto para não ter de cumprir a sua parte do acordo com a esquerda. A Lei de Bases da Saúde, a do Trabalho, da habitação, o combate à precariedade, podem esperar… sentados! Talvez lá para as Calendas!
Na verdade se há algo que um homem de esquerda respeita é o valor do Trabalho. E é isso que está em causa com o tempo congelado. Mas, o que é isso comparado com uma vitória eleitoral? Ou mesmo a mera salvação de um desaire nas eleições? Ou ainda, caso este aconteça, poder vitimizar-se e atribuir a culpa a alguém?
Os dois milhões de portugueses que vivem no limiar da pobreza não têm nenhuma razão para estar agradecidos a Costa. Muito menos para ficar gratos agora por os deixar entregue à sua sorte mais uns meses. No fundo, a fome é deles. A falta de tecto é deles. O primeiro-ministro pode muito bem ocupar-se a fingir que ficou ofendido com algo que ainda não aconteceu, que nem se sabe se vai acontecer e que, se acontecer, irá ter um conteúdo que produza os efeitos catastróficos que vaticina.
As bolhas imobiliárias entretanto criadas absorveram todas as migalhas do rendimento que, entretanto, restituiu mas não é isso que lhe vai tirar o sono. Afinal, os pobres têm muita prática de ser pobres. Hão-de desenrascar-se de qualquer modo.
Os parceiros da coligação, a direita ressabiada, os professores são meros figurantes neste teatro de sombras chinesas que pôs em marcha. Se José Sócrates pôde ser abandonado à chegada o povo português pode muito bem ser abandonado à saída. Tudo desde que se ganhem as eleições. Os princípios são exactamente isso: princípios. E nós estamos já nos meios: para obter determinados fins.