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Segunda-feira, Dezembro 23, 2024

Antonio Gramsci: o pensador para os nossos tempos

No julgamento do filósofo e político marxista italiano Antonio Gramsci no dia 4 de junho de 1928 o promotor fascista declarou: “precisamos impedir esse cérebro de funcionar por 20 anos.” Assim, foi determinada sua sentença por resistência ao regime fascista de Benito Mussolini. Durante os próximos nove anos, Gramsci transitaria entre prisões, clínicas e hospitais em Turi, Formia e Roma. Assim também começava sua nova odisséia, marcada por doença física e mental, que terminou na sua morte no dia 27 de abril de 1937, por hemorragia cerebral, aos 46 anos de idade. Indubitavelmente, seu adoecimento foi exacerbado pelas condições terríveis as quais foi submetido neste período de sua vida.

No entanto, estes foram os anos que ficaram marcados pelo florescimento do pensamento de Gramsci, como registrado em seus “Cadernos do Cárcere”, que vieram a ser publicados somente após a Segunda Guerra. Escritos em linguagem deliberadamente ambígua e confusa para frustrar os oficiais fascistas, os Cadernos cobrem diversos tópicos, desde a filosofia de Benedetto Croce e Maquiavel até os efeitos da automação do trabalho nos Estados Unidos. Talvez o termo mais relevante – e o mais complexo – a emergir do seu trabalho seja a noção de “hegemonia” ou “hegemonia cultural”, que, mesmo que não tenha sido cunhado por Gramsci, adquiriu aplicações tão radicalmente novas e originais que transformou o campo da estratégia e da teoria política.

Hegemonia se refere à influência cultural por parte do Estado sobre a classe trabalhadora e o restante da sociedade civil, além do âmbito parlamentar. Gramsci tem por intuito apontar as falhas da esquerda revolucionária na Europa, que via na iminente crise do capitalismo a oportunidade definitiva de instaurar o socialismo. Segundo ele, eventos como a revolução Russa não poderiam ser emulados em outros países onde a sociedade civil é mais robusta e entranhada com a ideologia estatal.

Em analogia à linguagem militar, ele diz: “Uma crise não pode dar às forças ofensivas a capacidade de se organizar com velocidade relâmpago no tempo e no espaço; ainda menos pode dotá-las de espírito de luta. Da mesma forma, os defensores não são desmoralizados, nem abandonam suas posições, mesmo entre as ruínas, nem perdem a fé em sua própria força ou em seu próprio futuro.” Portanto, o objetivo fundamental é adquirir conhecimento profundo sobre quais elementos da sociedade civil representam “os defensores” na chamada “guerra de posição.” Isto é, os elementos da sociedade civil que impedem a formação de um consenso político (sindicatos, as igreja, partidos políticos, ONGs, a mídia, etc.). Para obter a vitória política, de acordo com Gramsci, é necessária a redefinição do “senso comum” (“a filosofia dos não-filósofos”). Somente quando o pensamento popular for redefinido será possível a “guerra de movimento”, ou a tomada do poder político.

O próprio “príncipe da sociologia brasileira” e supremo da direita, Fernando Henrique Cardoso, utilizou o conceito para descrever a estratégia do PSDB em seu mandato. Em 1994, FHC – em referência à descrição de Gramsci do Estado italiano de sua época – disse: “o Estado brasileiro atual é poroso e gelatinoso. A porosidade deriva dos vazios que nele existem, dos buracos institucionais e da incapacidade que muitas vezes o Estado tem de responder às demandas da sociedade civil.” Assim, FHC defendia uma relação mais próxima do Estado com a sociedade civil, a fim de gerar o nível de consentimento social necessário para o funcionamento de seu governo.

O teórico cultural jamaicano Stuart Hall nota que a apropriação de Gramsci por movimentos de direita vai além. No Reino Unido dos anos 70 e 80, o partido Conservador liderado por Margaret Thatcher popularizou a ideia de “competição e responsabilidade pessoal pelo esforço e recompensa e a imagem do indivíduo super-tributado e enervado por programas de assistência social.” É essa redefinição do senso comum – e a falha da esquerda em elaborar um contra-argumento convincente e hegemônico – que está realmente por trás do sucesso do partido Conservador britânico e do partido Republicano americano em comunidades da classe trabalhadora.

Similarmente, o campo político brasileiro está longe de ser hegemonizado pelas forças progressistas e de esquerda. Diante da ausência de uma reação popular considerável aos retrocessos impostos pelo governo Temer – entre eles o fim do imposto sindical, a reforma do ensino médio e o congelamento dos investimentos públicos – a esquerda brasileira tem de se perguntar se seu dever de convencer a sociedade brasileira sobre a gravidade de tais problemas foi realmente cumprido.

Com o foco da esquerda centrado somente em viabilizar a candidatura de Lula pelo PT, existe um risco real de que as lições de Gramsci sejam omitidas. É claro que, dadas as circunstâncias do momento, Lula se oferece como a alternativa mais clara à derrocada à extrema-direita que o país pode sofrer nas próximas eleições. No entanto, supondo até mesmo o caso de vitória nas eleições, o perigo é de que a sensação de dever cumprido bata e a “guerra de posição” pare por aí mesmo.

Um resultado duradouro só virá após a construção de uma contra-hegemonia – que não se apresenta somente como fonte de polêmica e crítica, mas que transforma o senso comum através de experiências cotidianas, organizando-se na “textura da vida diária.” Para tal, é necessário um esforço coletivo dos movimentos trabalhistas, estudantis e progressistas da sociedade brasileira diante dos diversos retrocessos dos últimos tempos. No nível das experiências diárias, vencer uma “pequena batalha” para tais grupos é extremamente importante, já que são essas vitórias que transformam o discurso hegemônico e alteram as dinâmicas de desempoderamento presentes no dia-a-dia destas comunidades.

Após mais de 80 anos da morte de Gramsci, seu conceito de hegemonia cultural é extremamente presciente, especialmente na época digital, onde a informação se dissemina caoticamente. Gramsci não foi apenas mais um entre centenas de pensadores marxistas, mas talvez o pensador marxista para os nossos tempos.

 

Por Leonardo Sobreira  | Texto em português do Brasil

Exclusivo Editorial Brasil247 / Tornado

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