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Quarta-feira, Julho 17, 2024

Administração Pública durante o Estado Novo

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Os 157 opúsculos do Gabinete de Estudos António José Malheiro (1945-1974) quase todos on line

A Administração Pública durante o Estado Novo merece ser estudada com tanta atenção como as suas políticas e os seus políticos. Por um lado foi ela que deu suporte, por exemplo, à “obra financeira” de Salazar, no que por si só constitui um campo de estudo ainda mal explorado. Por outro foi objecto ela própria de políticas de reforma que só agora começam a ser estudadas, em que não faltaram inicialmente, como na nossa experiência recente, “cortes” que vieram a ser repostos, e fenómenos de criação de novos serviços para preenchimento de novas funções. Em geral o Diário do Governo é útil para fornecer pistas, e depois há que procurar no ANTT e nos Ministérios documentação em arquivo ou números antigos de publicações há muito descontinuadas. As sucessivas reestruturações que a Administração Pública tem conhecido, levando à redenominação ou fusão de organismos ou à sua transferência entre Ministérios, frequentemente prólogo de extinção, conduzem à obliteração de memórias, quando não mesmo à perda de fundos documentais.

É importante realçar os esforços de quem trabalha em sentido contrário, como a Secretaria-Geral do Ministério das Finanças, através da Biblioteca Central e do Arquivo Contemporâneo do Ministério, e perceber que a digitalização e colocação on line dos documentos contribui para preservar património, nem que seja por concitar o interesse dos investigadores e outros interessados. Neste contexto, cabe-me elogiar a já concluída colocação on line das Contas Gerais do Estado (que pessoalmente desconhecia e me evitará futuras deslocações para consulta e despesas com pedidos de reprodução) e a quase completa digitalização das publicações do Gabinete de Estudos António José Malheiro, que é objecto do presente artigo, no qual, como forma de estimular o interesse – e quem sabe, uma vez que há neste momento tanta gente adstrita a permanência no domicílio, suscitar observações – colocarei links para alguns “opúsculos” selecionados.

Falar de António José Malheiro permite contextualizar a muito recordada “obra financeira” de Salazar, que dá continuidade a preocupações de reformas da Monarquia – por exemplo a de João Franco de 1907 – e da República – por exemplo a de 1919 – e que na parte da reforma da contabilidade pública se apoiou neste quadro, habilitado com o Curso Superior de Comércio do antigo Instituto Industrial e Comercial de Lisboa, funcionário do Ministério das Finanças desde 1897, nomeado em 1915 Director-Geral da Contabilidade Pública da qual já era Chefe de Repartição, e que foi titular do cargo até ao seu falecimento em Outubro  de 1947. Na altura os Governos sabiam que era necessário trabalhar com a Administração Pública e assegurar-lhe estabilidade. António Guterres quando, numa preocupação louvável de introduzir critérios profissionais de escolha dos dirigentes, propôs a sua selecção mediante concurso (embora em meu entender uma coisa não implique necessariamente a outra) terá aberto justamente uma excepção para o cargo de Director-Geral da Contabilidade Pública, que deveria ser nomeado politicamente. Pessoalmente, entendo que os dirigentes das Finanças devem ter uma estabilidade reforçada.

O Gabinete de Estudos António José Malheiro criado por Decreto-Lei em 1945 por proposta do já desde 1943 adjunto do Director-Geral, Aureliano Felismino, e de outros quadros da Direcção-Geral, cujo nome homenageava o titular do cargo na altura em que completava 30 anos do exercício deste, e destinava-se a realizar formação de pessoal e a publicar trabalhos dos funcionários, dando continuidade ao esforço que vinha sendo feito numa base “semi-privada” por um grupo que de 1940 a 1944 publicara uma Revista de Contabilidade Pública (Albertino Marques, Aureliano Felismino, Carlos Ivo de Carvalho, Darwin de Vasconcelos), sujeita à Comissão de Censura…. Continha uma norma curiosa “Todos os serviços públicos ou entidades subsidiadas pelo Estado que pelo Orçamento Geral do Estado ou pelo de receitas privativas possuam verbas consignadas a publicações, enviarão ao Gabinete de Estudos um exemplar de cada uma das que se distribuírem depois de 1 de Julho próximo” que não sei se terá sido aplicada.

Logo em 1945 o Gabinete publicou um programa de concursos que havia sido aprovado por Portaria mas teríamos de esperar por 1949 para que Aureliano Felismino, empossado em 1947 como Director-Geral, publicasse o texto de uma conferência Vinte Anos de Administração Publica proferida na Biblioteca do ISCEF no ano anterior: Vinte anos de administração pública. Os “20 anos” são os de Salazar como membro do Governo mas o local e o conteúdo são curiosos. Aureliano Felismino tirara a licenciatura em Ciências Económicas e Financeiras nos primeiros anos de funcionamento do ISCEF, criado em 1930, enquanto era “aspirante” na Direcção-Geral, ficou pertencendo a uma Sociedade de Ciências Económicas constituída em 1941 e manteve relações especialmente boas com os professores Vitorino Guimarães e Armando Marques Guedes, antigos Ministros das Finanças da I República, que escreveram artigos para a Revista de Contabilidade Pública já citada, havendo também indícios que sugerem que teria mantido contactos com os professores Moisés Amzalak e Pinto Barriga.

Na conferência, sem deixar de elogiar Salazar, Felismino, cuja eventual participação em actividades políticas da Situação não encontrei indiciada e muito menos documentada, dá o devido relevo à gestão orçamental de Vitorino Guimarães e de Armando Marques Guedes …e à de Afonso Costa, que fora o primeiro a apresentar um orçamento equilibrado. Julgo que se pode retirar do texto e dos quadros nele incluídos que o conferencista imputa sobretudo os insucessos financeiros da I República à instabilidade governativa, aliás tenho alertado para a necessidade de estudar as razões que levaram à consolidação política do Estado Novo.

Com a nomeação em 1950 de Aureliano Felismino como representante português no Comité de Práticas Administrativas do Instituto Internacional de Ciências Administrativas começaram a ser publicados trabalhos por ele apresentados no Comité ou em Mesas Redondas, por vezes precedidos da realização de verdadeiros “seminários internos” na Direcção-Geral, de que na minha investigação para doutoramento em Sociologia Política tive ocasião de destacar Contas de exploração e de estabelecimento das empresas do Estado. O Gabinete de Estudos António José Malheiro nunca teve staff próprio, quando muito publicou diversos trabalhos de equipas constituídas “sob a égide do Gabinete” ou propostos pelos funcionários e avaliados por uma Comissão de Leitura, sendo os funcionários retribuídos por verbas de “trabalhos especiais diversos.”

Alguns desses trabalhos visavam a execução de orientações legislativas, por exemplo a preparação da elaboração do Balanço do Estado, nunca concretizada até aos dias de hoje: Subsídios para a Organização do Balanço do Estado, trabalho distribuído a todos os deputados da Assembleia Nacional. Existem aliás outros trabalhos de contabilidade digráfica que ser consultados.

Outros trabalhos dinamizados pela Direcção-Geral visavam o levantamento, discussão e melhoria de processos de trabalho internos, no que podem ser descritas como tentativas no domínio da organização e métodos, por exemplo Organização e Métodos nas Repartições da Direcção-Geral da Contabilidade Pública, e Colóquio entre os chefes de secção de liquidação sobre método a seguir na conferência de folhas (da 2ª e 3º classes de despesas) e de requisições de fundos, embora os próprios dirigentes e chefes que coordenaram os trabalhos fossem, neste domínio essencialmente autodidatas.

Muitos dos trabalhos de iniciativa individual assentam em leituras próprias, muito embora a comissão de leitura desencoraje os textos pouco originais. Um daqueles que são aprovados para publicação como “opúsculo” refere, entre outros autores consultados, um tal Carlos Marx…

Num balanço feito no final de 1968 Aureliano Felismino contabilizava quanto à finalidade 12 títulos na área de Administração Pública, 8 em Economia, 6 em Finanças, 20 em Formação Profissional, 22 em Organização e Métodos, 33 em Técnicas Administrativas. Em Outubro de 1974, mês em que solicitou a aposentação, eram 157, quase todos com notas introdutórias do Director-Geral, cujo conjunto por si só, constitui uma fonte importante para o estudo da gestão e comunicação na Direcção-Geral da Contabilidade Pública naqueles 30 anos.

Boas leituras

 

 

Com o devido relevo ao papel da responsável pelo serviço, Dra. Ana Gaspar, e da responsável pela digitalização da colecção, Dra. Paula Lobato Faria.

Decreto nº 5519 de 8 de Maio.

Revista de Contabilidade Pública, número especial de Maio de 1945.

Embora tenha havido demissões por motivos políticos, casuisticamente decididas foi com o decreto-lei nº 25 317, publicado em 13 de Maio de 1935 que se criou um instrumento de depuração ideológica. No entanto a regra em relação aos directores gerais continuou a ser o exercício vitalício.

Segundo me chegou, nos “Estados Gerais para uma nova Maioria”.

Decreto-Lei nº 34 625, de 24 de Maio de 1945.

O lugar foi criado por Decreto-Lei em 1943, tendo em conta que António José Malheiro já não podia, por motivo de doença, assegurar regularmente a direcção-geral, podendo ser preenchido por Chefes de Repartição ou excepcionalmente por um Chefe de Secção licenciado em Ciências Económicas e Financeiras, como era o caso de Aureliano Felismino.

O próprio Salazar fizera em tempos referências nesse sentido.


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