“Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”. Devorar a cultura e transformá-la em outra coisa. Transformá-la em uma nova autenticidade. Este pode ser o sentido da frase que abre o manifesto antropofágico. Ela sintetiza a base sobre a qual evoluiu o país. A grande mistura de culturas e uma interpretação própria do sistema econômico de produção de riqueza, pobreza e desigualdades.
O Manifesto, lançado em 1928, é umas das mais emblemáticas derivações da Semana de Arte Moderna, que completa cem anos neste 11 de fevereiro de 2022.
No Brasil, a fábrica e a lógica da produção em série davam os contornos de uma cidade que crescia freneticamente em uma onda de transformações captadas pelos modernistas que já em 1922 reivindicavam a autenticidade antropofágica, ou miscigenada, da identidade brasileira.
O mundo transformava-se após horrores da Primeira Guerra Mundial e a vida passava a ser contabilizada em escalas, sequências e estatísticas.
Mais de quarenta anos e muita história depois, os tropicalistas resgataram aquelas ideias e imprimiram no algum/manifesto Tropicália ou panis et circenses a busca por esta identidade. Se nos anos de 1920 o mundo entrava no modo industrial, na década de 1960 a cultura fabril já estava devidamente assimilada no espírito da época. O fim da Segunda Guerra inaugurara uma nova ordem e o american way of life tornara-se o dogma que regia o dia a dia do cidadão comum no raio de domínio dos Estados Unidos da América. Essa foi a antropofagia dos anos 60. Contestada e ironizada por Caetano, Gal, Gil, Nara Leão, Os Mutantes e Tom Zé, Capinam, Torquato Neto e Rogério Duprat no algum/manifesto.
A música Parque Industrial, por exemplo, é pura ironia. Ela descreve um mundo massificado e reproduzido em escala de mercado. “Garotas propaganda, Aeromoças e ternura no cartaz”; “o sorriso engarrafado pronto e tabelado”; “jornal popular que é um banco de sangue encadernado pronto e tabelado” mostram satiricamente como a indústria padroniza todas as relações, emoções e pensamentos. O uso da expressão “Made in Brazil” revela a grande influência cultural que os EUA exerciam por aqui. Ritmos regionais misturados ao rock universal, garantem os contrastes que marcam nossa cultura e nossa história.
Essa assimilação cultural à brasileira é enfim, a antropofagia que definiu nossa autenticidade. E que nos une no avanço industrial que promete (mas não entrega) nossa redenção.
Parque Industrial
Composição: Tom Zé/1968
Intérpretes: Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Tom Zé
Retocai o céu de anil, bandeirolas no cordão
Grande festa em toda a nação
Despertai com orações, o avanço industrial
Vem trazer nossa redenção
Tem garotas propaganda
Aeromoças e ternura no cartaz
Basta olhar na parede
Minha alegria num instante se refaz
Pois temos o sorriso engarrafado
Já vem pronto e tabelado
É somente requentar (e usar)
É somente requentar (e usar)
O que é made, made, made
Made in Brazil (vamos voltar à pilantragem)
O que é made, made, made
Made in Brazil
Retocai o céu de anil, bandeirolas no cordão
Grande festa em toda a nação
Despertai com orações, o avanço industrial
Vem trazer nossa redenção
A revista moralista
Traz uma lista dos pecados da vedete
E tem jornal popular que
Nunca se espreme porque pode derramar
É um banco de sangue encadernado
Já vem pronto e tabelado
É somente folhear (e usar)
É somente folhear (e usar)
O que é made, made, made
Made in Brazil (vamos voltar à pilantragem)
O que é made, made, made
Made in Brazil (mais uma vez)
O que é made, made, made (as margens plácidas)
Made in Brazil
Made in Brazil