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Sexta-feira, Novembro 1, 2024

Ao Fundo Pitangas

Vitor Burity da Silva
Vitor Burity da Silva
Professor Doutor Catedrático, Ph.D em Filosofia das Ciências Políticas Pós-Doutorado em Filosofia, Sociologia e Literatura (UR) Pós-Doutorado em Ciências da Educação e Psicologia (PT) Investigador - Universidade de Évora Membro associação portuguesa de Filosofia Membro da associação portuguesa de Escritores

Jardins, entrelaçados com o silêncio, charcos azedos a chapinhar no medo, rostos quase já não, vento e pouco mais, fantasia e eu, a entrar onde não cabia, sair de onde não me deixavam

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Tanto mar e nada. Nesta casa invadida pela ausência, onde as ervas quase fantasmas me rodopiam a pele, cercam o pescoço e cobrem os olhos completamente, tendo assim que fazer um esforço maior para me recolocar, os azulejos brancos já vencidos pelo verde do velho canto que era antes, local de duche.

Sei que devo continuar. Sempre acreditei nas profecias do velho Inocêncio, mesmo hoje, ou navegue interiormente e viaje por todos os cantos de mares descobertos numa óbvia ausência, que seja, do meu interior nómada, ou constrangidos silêncios descubram onde, do momento, nem mesmo agora na pele dele, onde há sempre um silêncio que não se explica, anoiteceu por lá. Parece ter sido mais cedo que o normal. Fiquei pelo menos com essa sensação, mas não me incomodo com isso, aceito as belas trevas do crepúsculo, um iluminar urgente das coisas que vou vendo, das coisas que vão entretanto surgindo, ao aproximarem-se do meu campo de visão, debaixo dos candeeiros anónimos e abandonados, e esquecidos, com uma saborosa iluminação. Mais adiante, Lúcia mantém bem cerrados os portões, colossais e de imenso ferro, parecia estar resguardada de ataques militares, tal a imensidão e o aparato da sua guarda. Porque será isso?

Havia por aí, disperso quem sabe, perdido ninguém sabe, havia, isso sim, sei, e mais do que isso, nada, havia e não sei que mais, mas o meu sorriso não.

Jardins, entrelaçados com o silêncio, charcos azedos a chapinhar no medo, rostos quase já não, vento e pouco mais, fantasia e eu, a entrar onde não cabia, sair de onde não me deixavam, segui e claro, nada mais que ser um havia por esses cantos redondos do entretanto, do nada todo e nenhum sentido, segui, como se fosse importante o meu rosto, ou valesse muito o meu havia, fui, ate que enfim, cansado, encostei na berma a minha nenhuma viatura, sem portas para abrir nem tão pouco para fechar, procurei colocá-lo a sombra, e protege-lo por não existir.

Havia, fui, degraus do desterro subindo, degraus sem aterro descendo, como menino ali, Havia, eu, senti que a liberdade não tem cor nem espaço, mesmo querendo inventar mais que ser livre, a escadaria suave e fria, as vezes quente, o esplendor de ninguém comigo que me sorria e eu sempre sério sorrir não queria, porque não sabia, mas seguia, sobre a escadaria do alem e dos vários tantos quase nadas ali recriados, sobre o que escorria dos varandins e dos jardins acima da cabeça, sem me cobrir, sem refugiar, espezinhava as calçadas e todos os passeios ultrajados de noiva, como eu ali, Havia, queria apenas vadiar a minha alma numa liberdade sazonal, num gesto invulgar, não para mim, apenas ao olhar de quem me via, ninguém ali existia, nem o meu rosto, nem eu, nem tu, ninguém, quem sou ali, Havia… sim, sou. E nada mais serei enquanto poder ser nada.

Ao longo da rua os meus passos ouviam-se. Sentia ecoarem quase no peito, largava as mãos quando me sentia preso ao vento, das vozes largadas bem longe, entre a folhagem que tombava a madrugada, longe o céu também, num mar de estrelas, num mar perdido entre as nuvens, num mar ansiado por dentro de sonhos que armam a minha calada caminhada, que não se percebe, ou entendo que destino, amarrando a ti as mãos soltas de mim. Quase sempre desaparecia e mesmo assim não me fazia perder dela coisas sempre antigas, o eco da voz nos ouvidos após um jantar, Lúcia, leva-me como aos pratos, as roupas, o lixo, ou as caixas das garrafas vazias nesta sala vadia, e ria parecendo ser verdade, aquele chocalhar de pratos sujos da refeição finda.

Enfim. Momentos descritos na orla da mais ínfima depressão. Ou no mais recôndito silêncio da noite. É como escrever e desprender quase surpreendentemente os resquícios escondidos do sangue, que se espanam escondidamente e assolam com certa dor, fingida, simulada, disfarce além do olhar e seguir engolindo o sal amargo. O sal doce. O sal destas paredes que não existem ou que se lixem, quando a memória procura e não encontra ou quando evita e foge e não se liberta, tem colada em si determinada azáfama que certamente nem percebemos de onde vem… enfim. Sem portas. Talvez. Repleto de um escuro inventado e gritar, ou que consiga ouvir-me e socorrer-me. Fazem doer-me os ouvidos estas águas estranhas escorrerem assim tão bruscamente por detrás das minhas costas. Fazem-me confusão os tiquetaques horríveis deste relógio de ninguém, ou da estação dos comboios desta cidade velha e suja. Como eu. Por dentro, as mãos içam saudades e buscam dentro de mim a fome de não ter vontade da refeição que arrefece num prato ignorado, quem sabe se é… enfim, ou mais do que isso, esta terrível dor de cabeça que me faz confundir as horas e as chuvas, sim, começam as primeiras gotas deste Dezembro em lugar nenhum e vens entretanto, como a chuva, quem sabe, e é por isso que chegas, vens como a chuva e com a chuva trazes a única solução que tenho para eliminar de vez esta sede que tenho e não sei se na verdade a sinto. Não tenho na realidade portas e essa sim, a preocupação maior de como me desenvencilhar deste claustro e passar estas, que acabam por ser barreiras, e sair, lugar escondido da luz do sol e branco, ou escuro, ou de cor nenhuma e impotente perante a minha raiva e gritos, que ninguém mais a não ser eu os ouço, gritos nenhuns, tenho a certeza, exactamente por não ter certezas e nem tão pouco saber como os evitar, ou devo arranjar como me enclausurar mais ainda nesta falésia viciada de paredes sem cor e horizontes nascidos para dentro do meu olhar que se brilha, nesta distância e vontade de coisa nenhuma, ou apenas e só isso, uma vontade que queira e não consiga, apesar de me esforçar e estrebuchar, sem conseguir, ou pelo que pareça não conseguir, enfim, abrir os olhos e desvendar que mar me assola as manhãs e mergulha a minha alma que te busca, que pesca, que vadia, que perde a cada instante que me experimente saltar nas areias escondidas e soltas nesta rua fechada de quatro paredes e sem janelas, e das coisas da rua apenas os sons aqui chegam e nada que o vento traga me chega, enfim, que serei? Onde serei? Onde estarei agora que não consigo mesmo abrir os olhos e desvendar qual calma e deslizante falésia me leva, suavemente, perdidamente, o desnorte deste mote emulado na garganta dos meus aprisionados sonhos e quatro paredes que cercam as ruas, da cidade onde me perco.

São distantes, sobem montanhas e ocultam madrugadas, risadas devassas e dobram maresias, sucumbem certamente e um dia, o tempo se ocupará por devolve-las ao distinto nada, ao imenso vazio de todos os rios e tempos, a todos os encantos se retiraram os espólios deste mercado sonolento, que abre pestanas e pestanejantes desejos, a tudo se retirará o desejo de tantos futuros, de tantos e puros encantos. Um dia, que restará dessa alma ambulante desvirtuada e redentora dos silêncios comprados sobre madrugadas?

Porque partem devassas as ausências, se encobrem nefastas melodias deste ritual ausente, as músicas do distante rolam sobre o som do tempo, diante a maresia escurecida e o nevoeiro das ondas estilhaçando-se contra os meus sonhos, que rebentam ondas ofuscadas e repelidas como ventos, que se arrastam madrugadas e noitadas, vão silenciosas diante olhares brilhantes, reflectindo sobre a alma o crepúsculo e a ressonância, sentem-se magnetizados pelos beijos alheios, pelos semblantes bestiais, pelas inconstâncias teatrais das noitadas carregadas na solidão do crepúsculo…

Parecem portos estacionados. Ofuscantes os distantes impresentes, cada dedo dirigindo-se ante a mão do destino. As lágrimas jorradas somam-se sobre a água, somam-se e dirigem-se sem destino, ao mar complacente, ao mar desmobilizador, ao mar do encanto, do canto de cada dor partida, de cada viagem conseguida, de cada rumo jamais repetido, como portos estacionados na distância dum olhar arrumado, ancorado sem silêncio, com as ancoras da madrugada neste quarto blasfémico de vozes espalhando-se pelas paredes que se repartem e dividem pelos sonhos do amanhã, em cada gota de misericórdia, por cada apelo e impulso se renderem depois, as lágrimas serão futuro deste mar que te dou, em tuas mãos que invento com os dedos dirigidos a um porto que se perde, quando partem devassas distâncias sem a voz dos teus olhos que me colam à manhã, sem o meu navio.

Sem que ainda restem os quintais, fiquem aventais e destinos dos beijos que darei, partirem os espólios do meu restante futuro, os empolgados e alongados projectos e todos os sonhos, somarem a restante monotonia que rejeito, que amputo à madrugada dos recados deixados em teus segredos, que se molham neste porto azedo e perdido, estacionado na amálgama deprimente dos salpicos comprimidos sobre a noite, que flutua lentamente pelos olhos semiabertos e rendidos.

Parecem portos inventados os meus desejos, portos ancorados os meus projectos, portos navegados os meus delírios, para que durmam devassas alegrias e sigam futuros espoliados e espalhados e rendidos, sobre todas as águas e todos os sonhos dos teus corpos ancorados nesta sigla de silêncios que invento e ancorarei, para que partam então e definitivamente os teus devassos sorrisos que me esquecem… Partem esplendorosos os sorrisos. Espalham-se pelo ar, levam fumos riscando o céu, rasgando o vento, rompendo com o tempo que dista da razão, que fuma empalidecido recado imaculado, rogado e desprezado, abalroado sentimento que é agora, fumo simplesmente, o invisível de cada estado, ira de sonhos e contemplados sentimentos de fuga.

Sem criar espaço ou distância, albergue ou asilo, sem marcar memória, desejo ou esquecimento, entrar ou sair da orbita das ideias, a que me relego, entre mim e o que vislumbro, o esplêndido sorriso aglutinando o tempo num copo vazio, ou memória que se enche de silêncio que se abarca num breu de beijos, o toque que me marca e alma ressequida, dorme ainda. Mesmo que passados se vendam ou pássaros se rendam a sua liberdade.

Os contornos vagos de todos os momentos, os vazios preenchendo o escuro entre a distância, sinto longe os passos da morte lentamente retorquir-se às maresias enfeitadas do meu rosto que se mergulha por si a dentro.

Coloco sobre as mãos uma ideia, agito sobranceiramente os cadafalsos magros do meu momento, como que se me quisesse exilar do presente exaltando as memórias que se imolam nos resquícios secos do delírio.

Brilham maravilhadas e as escuras, as palavras que dormem, o vento empurrando sem sentido os delírios que quase a origem de si mesmas, revoltas e breves sobre as relvas, como um charco de noite pedindo pisadas de ninguém, nesta orla, cânticos e sonhos em redoma rodopiam quase manhãs, quase amanhãs, quase eternas promessas de que da vida levam as dores entregues como nuvens rebocadas numa ordem repressiva, as fraquezas que subestimam a essência sem morte já.

Alojados ainda percorrem sob fantasias, os delírios debicados ainda se encaminham, ainda se expõem ao silêncio desta noite, encobertos os desejos de sonhar-te ainda cedo, ainda sempre, sem que nunca se repita de repente, o discurso destas nuvens sobre as ruas os meus passos, que se perdem entre as ruas quase escuras, quase nuas, quase sós, iluminam bem distante a minha azáfama, a minha sede e mesmo ainda, um coração já vendido ao silêncio do presente que me cala contra as minhas próprias iras, iras calmas, já adormecidas, já ausentes, sem sentido nem ressonância, como os pássaros que compraram liberdade e bajulam lá bem longe, o orvalho desta vida um dia certa, certamente mergulhando os meus oceanos recolhidos na ausência das palavras dos teus beijos, que me calam.

Foi por detrás da noite. Por entre o sabor das trevas. O paladar escondido de gostos que a memória possa recordar. Havia a distância dos ruídos engolirem o fim da noite. Havia sorrisos teus. Foi por detrás da noite.

Sabes como começam e acabam todas as histórias, umas mais vulgares que outras, mas há nelas todas e tu sabes, sabores que se trazem depois pela manhã, sentimos isso na língua, sentimos isso no corpo, sem que desfaleça, a vontade fica e o desejo de repetirem-se sempre histórias iguais, nem que sejam sempre sazonais.

Parecem pedaços de Verão.

Como se distinguem as coisas, pelo efeito das sombras que o mar repercute na distância, o sorriso mórbido das manhãs, repleto de ausência e angústia, os sabores que amargam nefastas turbulências das maresias que se inventam, o reflectir de si em si mesmo, as palavras amorfas e medonhas gravadas no varandim espartano do alem, diante o nevão do tempo, o alvorecer do arvoredo colado à sombra, entrando subtilmente e deitando-se nesta cama dos meus últimos momentos deste instante.

À janela do tempo, onde se dispersa vagarosamente, despreocupadamente, ousadamente irrompe o claro dia observando o vazio espalhando azáfama pelas ruas invadidas e repletas dos ruídos amorfos dos que seguem, sinto em cada um o instante que sou quando me entrego, e ali sigo, como um vento comum engolindo o silêncio que invento, as palavras arrasadoras de horas e esplanadas sem vazios e mesas preenchidas com riachos de imensas coisas, perdem-se subtilmente indiferentes e seguem-se as horas que incluem no nada o total dos dias…


Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Ao Fundo Pitangas

 

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