Um café matinal. Diante refrescantes memórias. E raro lembrar-me dos teus olhos engolidos pelo tempo, dispersados pela indiferença, arredados das consequências
22
Saboreia da manhã, igual silêncio, igual dissidente, o mesmo ressentimento de horas antes, sempre, futuras incógnitas, este mar em mim trás o cheiro do desejo, onde estiveres, sentirei como te movimentas nas ondas azuis desta manhã, deste mar.
Tilintarem heresias… cáusticos nadas… um longínquo céu reflectindo a minha ânsia, a minha caminhada, sonolenta, a margem dos meus desejos. Saberão talvez, ou como queiram, os restos desse mar dormindo aqui, à janela nua, dos ventos entrando estranhos como a melodia do além, sentirem os sepulcros vagos do instante. Da vida. Do infinito.
Sabor breve. Sal matinal. Sabor do tempo. Das ruas e temporais, senti-las nos claustros da ânsia como um silêncio rompendo o vazio.
Um azedume raras vezes. Um salpico, interferência, arrepio, só sei que de mar sempre o meu olhar resvala, sacia sobre as ondas do temporal de vidro entrando-me pelos olhos encharcados de sombra. De ânsia. Dos anseios que a vida chama. Que me chama. Dos apelos varridos de anteriores dias ainda na alma vivos. Dos futuros, esses, serão ainda passos nesta areia comovente dos silêncios comovidos com o desespero de tantos outros nadas ou por tantos outros mares, que a vida imensa aloja.
Um café matinal. Diante refrescantes memórias. E raro lembrar-me dos teus olhos engolidos pelo tempo, dispersados pela indiferença, arredados das consequências e dos maus gestos, na memória ainda assim, esse rosto lavado para que eu o observe belo e colorido pelas estrelas duma alma altruísta e pura, quase voando permanentemente.
Saboreio indiferente o presente ausente. Indiferente inconstância rompendo as iras dos percursos imaginados. O paladar dos tempos e tropeços nos nadas, nos inventados obstáculos esbarrar a minha caminhada, que me impede, que me absorve, que me leva na mesma numa varredura misteriosa, num jazigo de pão vender-me de vão e raro ocaso. Rendição perante o absoluto. Inanimado sim. Jamais se entregariam os meus restos musculados de vazios silêncios numa caminhada vivida nos entreluzidos do nada. É uma vida dispersa, dispersando-se em si mesma.
Este breve vento aumenta a sede. O sono. Este desejo seco nas luas. Breve e distante talvez, perto dos olhos assaz coloridos olhando um céu aqui ao lado, subindo escadarias do fantástico entre os ossos que se roçam calmarias todas as manhãs, após tocar-te num inventado garantido, num extasiante corrupio almejando as imensas desventuras perdidas nas horas incessantes dos momentos, dos teus olhos, teus, bailam ainda assim os teus cabelos soltos como uma Primavera intemporal, sem que me esqueça, jamais me esqueço, tocando o meu rosto com o teu sorriso distando-se, a passos titubeantes, vagarosos, equidistantes e quase prevendo o impossível beijo nesta maresia que desejo, infinita.
Mundo de restos, vazios, sepulcros. Ouvia que Lisboa acolhia. Recebia.
Como se fosse uma casa nova do outro lado da lua cheia.
– Quem inventou esta guerra?
Fuzilam o nosso silêncio, aniquilam o nosso sono, sonho, nessa casa que é nossa, repleta de convénios de famílias, de todos os ramos da vida.
– Que querem?
Os cantos redondos dos quatro cantos do meu país ali, à janela de não sei quê, diria, não entendia o que seria na altura a guerra por uma independência merecida, e porque não a dariam?
– Os anjos óbvios como num desígnio de ter merecido ali nascer?
O que fica não fica para sempre, pensava. Acredito.
Mas não.
Disseram que Lisboa acolhia numa redoma sem cheiros nem qualquer frenesim. Mas não!
Um dia, bem cedo, foi o que me fizeram. Meteram-me nos escombros de casas de metal, com asas, como em grades de arames que voavam, levaram-me para uma fortaleza branca com muros de distância na margem de lá dum rio, diria se soubesse na altura, mar, como muros de salvação para dentro das paredes mórbidas a fingir não haver inocência, nem sequer quem, sabes de quem falas?
Pode até ter sido mais do que isso. Ou desmentem-me? Que fossem também ser o mistério? Fosse isso verdade.
Diria.
– Estou metido num bando de arruaceiros como torpedos caídos do céu sobre a casa da minha mãe. Numa panela de pressão, como feijões sem defesa.
Todos os dias e a mesma hora. Não encontrava aquele sorriso. Era quando pensava seguir absolutamente disperso, de passos soltos, quase desaparecendo, a medida que a distância se tornava mais próxima. Cavalgava sobre os pés que mal sentia.
Não queria, creio eu, acomodar-me àquele pensamento. Sei que me levava, onde, nem sequer sei, mas que o largava, por isso a caminhada infundada, que me preenchia, mesmo que vagamente, superficialmente, queria mesmo, isso sim, aperceber-me de quanto me leva a incerteza de mim mesmo, quando me subjugo aos pensamentos de que faço questão em largar. Por isso os deixo.
Ciclicamente. Todas as manhãs. Num perpétuo caminhar, indo pelas paredes do tempo, as incertezas do percurso, mantendo ainda e sem querer mesmo repescar pensamentos que me mancham o silêncio.
Onde encontrei certamente as vozes que como eu caminhavam, que pretendessem quem sabe, misturarem-se na minha estrada. Ainda senti por breves instantes a mão quase nómada do vazio, parecia-me uma lufada fresca de algo novo, um refrescar rápido de locais difíceis de descortinar, de mãos coladas ao impostor vazio do nómada, alguém investindo contra mim, sem conseguir ainda levar-me, nas suas dóceis garras de futuro.
Percorro ainda assim, mesmo sentindo como perco da sensibilidade as mãos, ou porque as deixe misturarem-se num ofuscado escuro desta circunstância, a caminhada que me obrigada a corresponder ao que não sei, indo na mesma num arrufo dorido. Quase pereciam palestras perdidas numa imensidão de coisas estranhas, que rodeavam a distância e todos os que ali se cruzavam, enlaçavam as mãos também, as minhas, não, estavam ainda perdidas.
Apesar da dureza do solo, onde se colidiam os meus calcanhares em cada passo, mesmo que amortizados pela brisa intrínseca da manhã, cruzo o olhar perante a esfera de gente que se rebola em caminhadas também, que comigo se cruzam, ante amargos desvios da vista desinteressada, tentando vislumbrar apenas qualquer luz num horizonte muito pessoal. Rígidos olhares quase amargavam a distância. De odores levados. Trazidos. A esplanada quase pronta do senhor Antunes, a mercearia arrumada numa lufa trivial da vida normal, de quem pára e compra, de quem nada enxerga, ausentes, tantos, e badaladas incessantes do sino adiante, ou da igreja da estação antiga da cidade, o comum, invulgar, o resquício, o café, manhã, ainda manhã, a mesma, e sempre, caminhando, eu, no preponderante e intolerante assolar da estrada ingerida sem ânsia, ou do cansaço, que importa?
Havia alguns minutos, ou instantes, pouco tempo havia passado ate que me deslocasse ao preludio da vida exterior de todos os que como eu, se dirigem indígenas desta vida de todos, de alguns, desta certamente raridade de crepúsculos e avarezas dos transeuntes, ou que busca indiferente, nem todos, certamente me perco, me desloco, num arrufar perante nuvens ainda frias, sendo obvia e claramente escura ainda a manhã, o frio gélido entranhando-se à consciência do que seria se fosse na mesma, outro ainda, ou na mesma o mesmo que antes, dormia num relento raro e pobre, sentindo-me filho ainda do pescador que a vida difícil fez transbordar, engolido pelos mares dos sonhos antigos, quando ainda a minha mãe esperava, bem cedo, ou tarde já, mesmo quando mentalizada já, também, que desta vez nada adiantaria esperar, ou que mensagem chegara, ou que sensação lhe dissera, ou que motivo sentira ela, dizendo-me calmamente, Vai filho, segue, ele não volta mais, nunca mais o veremos. E a vida retomava na mesma o percurso anterior ao que ela me dissera, mesmo que ninguém terminasse de viver. Nunca será o fim da vida, mesmo que se morra, mesmo que não se desligue o interruptor da consciência. Há certamente quem mais, nos dê a sensação de vida. Exacta ou não.
Que refeição ofereceria eu num tempo quase exacto. Digeriria como diáspora rara, como vagão das consciências que comigo vagueiam, quando ainda assim me cruzo ou não, com as esferas ou pedras, das que sim ou não consigam mesmo e também, gerir os tempos da vida, e como faz o senhor Antunes. Logo cedo a mercearia reinicia o que sempre faz, repete-se ou não, este ciclo que enclausura aos círculos e aos típicos afazeres dos seres que desta vida, ou de outra, mesmo que nenhuma, ou ate todas. Não sei, garanto, se há ou não mais, menos, outras, raras ou não, a lida abusiva, num recomeço que se queira ou se seja obrigado, assumindo como que de uma obrigação, óbvia e natural, gostemos dela ou não, reaviva-se o trânsito fora e dentro, mesmo que na mercearia tal senhor se assuma como um todo de todos nós, merceeiros ou não, nesta vida de estradas sempre. Fora ou dentro da alma. Gira nela a vida.
Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Ao Fundo Pitangas