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Segunda-feira, Novembro 4, 2024

Ao Fundo Pitangas

Vitor Burity da Silva
Vitor Burity da Silva
Professor Doutor Catedrático, Ph.D em Filosofia das Ciências Políticas Pós-Doutorado em Filosofia, Sociologia e Literatura (UR) Pós-Doutorado em Ciências da Educação e Psicologia (PT) Investigador - Universidade de Évora Membro associação portuguesa de Filosofia Membro da associação portuguesa de Escritores

Barcos de sol enchem o mar, enchem o ar os sonhos de sal. Os sonhos partem sobre o ar e ficam nas mãos os barcos de papel, os barcos sobre a cal desenhando ao longe

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Um dia a madrugada romperá os canaviais e tu lá, sentirás o rastilho vândalo dos silêncios perdidos em tempos de oração, nem queiras saber das névoas e das tempestades, não queiras sonhar o destino escolhido dos doutos, e os que nada sabem, serão cremados na sapiência avulsa de quem os destina criticando, não serem mais que nada.

Que um dia a morte incida.

Aliás, sei que ela nunca falha aos seus prenúncios, por isso, jamais duvidarei da sua competência em nunca faltar aos seus compromissos, afazeres.

Quase nunca avisa!

Dar que fazer para bem de tantos, afinal, levam-te em surdina num colegial silêncio, de palmas, de flores, e alguma rega refrescante denunciando a imagem do que em tempos foram, os que, como tu, antes de se sacudirem, ou melhor, serem sacudidos pelo destino, foram honras mesmo que nada tenham sido ou apenas delatores e maus, nem mais me importará a partir daí, creias nisso ou nisso nunca creias.

O corpo depois de silenciado pelo destino, nada mais diz a não ser, não te verem os seus olhos, fechados à força pelos tratadores da alma varrida pela sentença de morte dos que morrem, sei, todos morrem de igual formal, ou seja, morrendo apenas.

Que importa agora que mal te levara?

Qualquer azáfama depois de teres partido no carrinho preto dos senhores da agência, tristes como sempre com tantos que já levaram num silêncio profissional.

Nem discriminam, levam grandes e pequenos e, quem sabe até as almas. Não me lembro de ver qualquer caminhada destas de ninguém perto, a não ser pela televisão quando morrem senhores ou coisa assim, estes não pequenos, nem grandes, coisa nenhuma, são figuras fortes que o mundo comprou para nos emoldurarem no cemitério e de lá nos arrancam os ossos se faltares ao compromisso com a câmara que cobra a tua morte.

Nem sempre a morte é mórbida.

Eu por exemplo, na minha, sorri!

O resto da cabeça envolve-se na derrapagem da água barulhenta, descendo aos salpicos um destino perdido, levando com ela a instabilidade dos meus pensamentos, absorvendo-os em pensamentos longamente espalhados pelo tempo encharcado o resto do dia, esperando um telefonema quase efémero, que me leve daqui os ruídos da água a batelar-me a cabeça com os permanentes pingos imensos sobre as chapas do telhado, onde moram as minhas ausências de mim, o mundo real do meu silêncio verdadeiro. Sinto que, pelo árido e denso vaguear da tarde, se perde alguma calma minha, como ruídos secos na alma furtiva envolvida na lama dos lagos nascidos entretanto. E como me entristece não receber a tua chamada.

Esguichos de luz continuam a madrugada.

Quantos gritos se repetem, perdem-se no escuro dos momentos mergulhados nesta solidão fria de um distante amor, deitado nalgum mar esperando-me. O azular quase constante da madrugada, onde gesticulam as nuvens e se arrastam nas ondas do vento, o ruído também imenso das ondas deste mar que tenta invadir a areia indefesa, sob o azul da noite, dos gritos amargurados do esquecimento que dorme, o sono do inocente cobrindo-se de areia onde nem sequer árvores se agitam. Bebe do tempo longamente distante, da noite enfurecida em sonhar-te entreterem-se comigo os chuviscos presentes que me elevam molhado, ao meu distante eu neste instante permanente silêncio da minha solidão, saciar da boca a água cheia do salitre que esvoaça o templário solene da mundana caminhada e sempre só, esperando sempre e eternamente a presença da voz que nunca chega, ou que nunca se encaminhe a mim dirigindo-me a mim os seus prementes lamentos, numa colagem das vidas incomuns em que ambos pudéssemos partilhar, pelo apelo a que sempre elaboro e sempre presencio, ouvir-te, concluiria lentamente a minha premente necessidade de sentir-te, ou o teu telefonema mesmo que anónimo se fizesse materializar em mim, um resto renascido de solidão.

Bem-vinda então se me banhas com ruídos. Com gratidão de séculos entre os muros desta noite, o relógio da minha essência dissecar-se em mim, num atroz beijo de salgados momentos, mergulhados na tua ausência. Sem que o telefone apele à minha necessidade, num silêncio que se mantém, num gesto apenas quieto, espero, aqui me mantenho esperançado pelos teus peculiares gestos solares, penetres as ondas magnéticas do meu pensamento e me alertes e despertes, me incomodes que com a tua necessidade de perturbares a paz, essa será sempre a minha vontade, mesmo sabendo que jamais acontecerá ouvir-te apelar de rumores dos meus sempre ausentes toques sobre a tua pele, que me abandona, repleto nesta chuva bela do amanhecer quase meu, de ruídos e conflitos entre a minha consciência adormecida, putrificada sem ressonâncias os sequiosos alarmes do tempo, contra a chaparia do meu lar, que me enrola no seu humilde aconchego da tua ausência assumida por mim mesmo ausentando-me, como naquelas intempéries antigas. Ainda assim, neste acutilante isolamento, sentindo-me sorver da solidão, a espera de que de ti venha o tal grito, refastelo-me quase tristemente, à sombra desta talvez última noite, onde só a chuva me consiga transmitir os dilúvios do que de mim possa restar.

Continuo ainda a espera dos teus gritos.  Como saboreio feliz o picotante gotejar desta eterna chuva.

Maria Quitéria diz:

– Não durmo há dias!

Não faria mal, mas mata não dormir! Azougada, ela, sobre a pele, usa um vestido que não se usa já, preto, longo pelas pernas a baixo, e ela caminha, sob um sol que arrebata qualquer pele negra pelos lados do equador, numa África nascida quente e como os rostos ali sustados, alojados, pela correria desenfreada, mata a dentro atrás dos elefantes, talvez anos a fio.

Maria Quitéria não nasceu em África. Nasceu na Gafanha da Nazaré, perto do mar, filha de ondas perdidas contra a muralha do seu destino, o seu pai, finado há muito, e mais, que também já finaram, deixam-lhe figurados nos rostos os riscos da antiguidade numa cela de quarentas, ou menos, e os passos como o ponteiro das horas, lento, cabisbaixa por que sim, dizem-lhe a ela os seus desígnios, para que assim se sinta melhor.

Não dormir mata, mas mata também não viver, pelo menos na memória, nos destinos perdidos de ondas arrebatadoras que lhe levaram os momentos em que, na altura, lhe causavam motivo para outro comportamento.

Arreliar faz bem, estimula, faz agir, reagir e tomar medidas, medidas físicas se possíveis, gritar à criançada no quintal, ao marido nutrido de uma substância alcoólica e de barriga a escorrer umbigo a baixo, e ela, sob as saias a varrerem a calçada navega em si uma alma talvez sua apenas, no requinte seco da sua voz:

– Nada disso hoje, nada do que fora, sei, incomodar faz falta, digo-o hoje, depois das quimeras absorvidas e idas as dores insolventes, ficou o frio da saudade nesta estrada sem destino.

O chão limpo a cores de verniz feito, a saia ou bainha longa de escuro a modernizá-lo, com sotaque de ausências, pelo cabelo as asas levadas pelo vento, a caminho sem fim ela, escorrido pelo pescoço o brilho antigo de uma ausência é ouro, dos que ainda valem, os valores seriam de sentimentos:

– Talvez devesse esquecer como o mar amei.

De costas viradas para o céu aquele cascalho azul que fora barco um dia, já nem lixo.

Barcos de sol enchem o mar, enchem o ar os sonhos de sal. Os sonhos partem sobre o ar e ficam nas mãos os barcos de papel, os barcos sobre a cal desenhando ao longe o horizonte que se abre no peito. Barcos que me enchem sobre o vento, as acácias tépidas do silêncio, crescem devagar como o distante neste pedestal arcar de contos cantados, como cigarras sobre as asas os barcos evaporam o infinito, o olhar partir, ficarem entre as mãos as histórias de vento que bailam no ar como as estrelas do céu. Barcos que arrumo no meu quarto, que alojo no meu peito, com que enfeito o meu desejo, barcos com marcas de prazer, com medalhas de amor. Barcos que voam sob o olhar, que enchem o altar, que bebem devagar comigo este cálice a fugir, que sonham até Marte as delícias de sonhar. Enche-me de ti, como um barco enche o mar…

A sede cega dos silêncios arrastados nesta enxurrada surda, por canaviais avassaladores num repente em surdina, sob o eco evaporado da minha pele.

– Quero a minha filha!

Dona Casimira num grito de desespero encostada a latada da EDP sob escombros desarrumados pelo vendaval, tacteando isolada, perdida na alma escurecida e dia já, num ricochete perdido dos ventos.

Vi sobre que dor um grito sem jeito da mãe, de que lado a sua alma ria rio abaixo, um repetido eco surdido por maresias de morte. Ela, ali plantada no frenesim acústico de quem sabe como dói perder e ela, de rosto abúlico, eu na televisão sem sorrir, sei lá, ela deu que significado a vida ali, que dia, que rua, que vida, nada valeu!

– Quero a minha filha!

Insistia, como apela um direito de sobrevivência subindo escadarias do seu mais que amargo documentário da vida num dia, em que se dormia solene noite na cama visceral do lar, lágrimas ali, no poste enjaulado daquela EDP que nem sei.

Talvez não saibas como sei ou mesmo como tu, não sei. Como perscrutar este grito do longe, este gesto sem vida, este degelo ali!

– Que existas Deus! peço como se por ventura me desses uma dádiva de que nunca usara, Perdão pelo não, desculpa pelo diapasão dos meus pecúlios, não esqueci, embora saiba, nunca me submeti ao que daí as preces valessem.

Dona Casimira na rua inundada.


Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Ao Fundo Pitangas

 

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