Sorrisos intervalam, minutos após minutos, qual diálogo, preso à vontade das horas, a vida dispersa urge, cresce, entretidos certamente, viajam como delírios e sem fronteiras
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O mel é tudo o que bebi, no fel escondido a tua voz a arrastar-se sobre a cal, e eu, e eu, aqui, assim, subo a escada deste fim, assim, sem ti, onde estás, madrugada que inventei, aqui, devagar, subi, onde vi quem sou, o mel evaporado nesta mesa de ninguém sem ti, sem ti, rasgo um guardanapo de papel e a mesa foge dos meus pés, sinal de que nada vale sonhar, dormir, aqui, onde vivo sem ninguém a cal a derreter-me e as tuas mãos degolarem o meu desejo de nada ser, para nada ser, um escudo transparente onde me deito para dormir, sem ti, sem ti, que me falas ao ouvido neste saco de metal, assim, assim, no vestido branco sobrevoo as manhãs como nuvens sem sinal, acordo ao ruído que pisei, saio da cama sem dormir, o meu sono foi apenas um momento por viver, aqui, assim, sem ti, bebo o gelo desta mesa um café por deglutir, mexo e remexo a colher que me brilha o seu metal de carvão, vão, vai-te embora deste quarto sonho negro, perturbado devo estar, eu sei, eu sei, o mel é tudo o que bebi.
Sorrisos intervalam, minutos após minutos, qual diálogo, preso à vontade das horas, a vida dispersa urge, cresce, entretidos certamente, viajam como delírios e sem fronteiras, as palavras de Lúcia são contos antigos, ou que disfarcem uma verdade qualquer.
De Senegal, a viagem trouxe sabores africanos, o espectro do belo, disse ela, vacinada contra as heresias dos trópicos, rastilhos escuros divagam entretanto, seria uma passagem secreta da estadia, nunca se sentira observada por lá, a vantagem de estar longe das realidades de tudo aquilo que certamente, a sua vontade quase só, seria membro permanente de viagens.
Das fotos de Fortaleza, vejo a alma que saltita. Restolhos ensolarados da vida lá, a maresia acrescida, o rosto suado ante tal sol coberto entretanto, pelas fragilidades da pele perante algo quente demais.
A penumbra quase foge, ao fundo, as cores queimam a distância, o sol reage, os seus efeitos são apenas belos, proporcionam de tal forma o silêncio da beleza, adormecendo lentamente, por alturas do ocaso.
As águas viajavam, percorriam serenamente as planícies dum quase anoitecer, os olhares regalavam, clandestinos, perdidos na azáfama dos instantes, preenchendo de sonho o tempo, um céu avermelhado, contornos de futuro, ripostam as suas mais maravilhosas caminhadas, quem sabe até onde possam dormir, onde possam resguardar da noite o fim de tal beleza, calmamente, como Lúcia, ali, de costas para a vida, sorrindo os momentos do longe, guardados nas fotos que a alma trás, até sempre. De pernas meio cobertas, sentirem a água dissolver-se lentamente, como o abraço do tempo sorrir na alma, espumava a água dentro da tarde, até de novo sentir o regresso, que importa, tudo será repetido, nada será esquecido.
Ostenta vagamente a saúde do tempo. Repletos os instantes, saboreia como refeição o silêncio penetrante, onde morem vagos circuitos, respondendo inconscientemente às passadas de qualquer realidade ali repleta, implícita à vontade da vida, ali alicerçada pelas têmporas do tanto faz, telúricas ausências, a natureza faz sentir a vida. Gélido silêncio rompe quase todos os dias, basta que o pensamento se refastele no silêncio da tua ausência. Resfriam-se os sais da tua pele. Num balouçar das tuas saias. Na viagem. A meio, quase fantasma, bela a rua principal, dizem, decorada e sombria, iluminada a breves trechos, preenche o espaço por entre as mãos, sorridentes ventos, restos de felicidade, num condomínio privado de salientes relvas, abrasiva verdade, coberturas díspares, como a garagem real depondo ecos da viatura arrumada, estalos de fechos e sons de respiração, caminhas em direcção ao interior da manhã, como quem lá espera por ti, anseia ver-te, radiante… a maresia das tuas faces, elásticas, rosadas, sorris.
Por que janelas vejo a rua. Porque sinto a brisa. Onde moro nos instantes limites, das minhas ânsias rudes, sei lá, preciso de ser tantas vezes displicente comigo mesma, desinteressada com a rotina destas tarefas antiquadas, sempre resignadas, às vezes, vontade de rasgá-las, atirá-las para longe dos meus braços, prende-las na estrada, como bacalhaus estendidos pelos postes que às vezes iluminam tal cidade, sentenciada nas minhas raivas, vertigens quando conduzo, miragens quando me sento aqui, de frente, o vidro, a rua abandonada, alguém disfarça por que razão não há vontade de ser mais, ser menos, a ruído depois de tudo chegar, todos aqui à volta das minhas heresias. Preciso das alucinações que me fazem encontrar curtos segredos de verdade que encubro, na orla do tempo.
Fervem as florestas neste país que queima. Esta cidade, de um beiral sem cor. De recantos e silêncios, seria Viana, Viena, Villarreal, Valpaços, Valbom, percorrida esta estrada vezes sem conta, inúmeras passadas na borracha deste veículo antigo, sem as árvores, sei lá, acredito suportar sim, não contar com elas, as árvores, que ladeiam esta estrada por onde passo quando te busco. À esquerda um jardim fantasma, havia ali estado creio, contigo a meu lado acredito, e víamos fingindo dois namorados que ignoram até a chuva solta, sobre os cabelos esquecidos do tempo, da hora a que se devem abandonar, ansiar outros dias e caminhar, separadamente, como sempre foi, ires de vez até não mais voltares nesse dia, sentir o cabelo entrando, perturbando o olho, o esquerdo, o direito, sobre as narinas que nem sequer se sentem incomodadas, e tu vais. De repente parece até ter eu acordado, gritando… Lúcia! Valadares já dormia, que linda é esta cidade… como a terás tu descoberto?
– Pensei dizer-te como, um dia. Não irias descobrir, foi como pensei sempre, sabia como não podia esconder de ti o verdadeiro nome destes nomes todos, Valadares sim, é a minha cidade, aqui moro e tu cá estás, continua o teu sono, vai.
Singela. Sente-se nela. E nela, encontram-se, ainda que em pedaços, um pouco embelezado pela nortada das viagens. Cores também. Cheiros. Inclusivamente os bancos à beira da estrada, tão iguais aos que já vira, tão serenamente, por um qualquer jardim tantas vezes encoberto pela neve. Poderia até dizer ser, por exemplo, Bratislava.
Desviados da razão, num voo sonhado, requinte sublime, sobre a maresia díspar da tua voz, acoplada enfim, num transporte aéreo de qualquer nação, rumo ao interior dos momentos desejados, saber enfim, será sempre uma questão óbvia, sentir em todos os passos o frio do espaço.
O arrulhar brando, sob as terras secas dum Verão sonhado, sensível café matinal, caminhada, bem perto, os ralhos lentos da maré acordada, fumegando ansiedades, ou que apelavam corpos nunca lá bem-vindos, passo a passo, ante o passeio recolhido da vida galgando, a miragem por lá, urgente, mal se abriam os olhos, perante tal sorriso, tal pranto, cigarra às avessas na avenida como Espinho bailando, ou do torneio ali, vólei de praia até de novo regressar, mimar sequioso relento dos teus deveres sequentes e sentidos, o ruído à viatura, deixa de lado este banco de jardim num largo cercado, rede por todos os lados e ainda assim seguia, ciranda solene caminhava, até mais não alcançarem os olhos virados ao largo sem sol, perto da praia.
De lingerie discorrida na gula dos beijos doces. Como num canto este retracto dos seios, de saias, a foto em ti como nua, o som distante era um arfar escondido sem ti, os desejos ali como um acto de Inverno, como se fosses demais ficar, sobre a areia, nua, o desenho estático dos sonhos neste calor de inventar-te.
– Não, não faz mal.
– É só ver-te, e como azul o silêncio.
Um repente em tudo enquanto o seco ali, um repente inerte, verde, sobre como foras um dia, digo:
– Abre devagar o tempo.
De beijos, como se em sargaços de mel um corpo e tu aberta naquela verdade, mas sonho, sem o mel dos sonhos este corpo de rasgar, Samatra? ou ungida no sal vermelho das ânsias, deitada no quintal, nua.
Nuances, só isso, enquanto que mais?, dizia, e esperas nocturnas nem mais basta um agora e já, quase rápido, quase de núpcias, de vento e que venenos, cair após ti, num soluço de náuseas a desbravar que corpo um remorso teso, obtuso, na roupa nenhuma que corpo a minha lonjura quase, sobre que salpicos este desejo um mar a naufragar-te pelos salpicados copos a minha noite desvanecida e tu, ainda, ainda nada, que raios, talvez uma tese e o doutoramento ainda.
– Vibra. És tu?
De repente nem mais e de seguida, uma volúpia tangida de rancores esmerados enquanto a sul um sono sem medos.
Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Ao Fundo Pitangas
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