Nas ruas, magotes de raros passos, de tudo e todos, ali seguindo todos os vãos, e nada vãos, todos os momentos como quem inventara também
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De têmporas gastas e escritas, num relatório dos acontecimentos inventados, descreves sobre a areia seca as margens da vida, as impossibilidades ali, limitando mais que todas as intenções seguintes, caminha, rouba do mar o espaço que é seu e entrá-lo, adiante, adiante, encontrarás mais dentro uma plantação de sonhos, recheados de vidas e adquire a que queiras, a que te complete, a que consigas ou não entender, veste-te dela ou nela e com ela, não regressas aqui, onde deixei a pele fugir de mim e me perdi na distância, ficou entre mim e o fim do mar, longe da vista dos comuns, buscando o sol ou não sei que mais, não sei de mim, não, onde estou? Quem poderá dizer-me quem sou? Quem quer que me descubra? Todos evitam o ressurgimento dos meus apelos, todos fogem e tapam os ouvidos e quase pensam, se ao menos ele se calasse… nem a sombra das árvores desta vida se acomodavam solitárias numa noite ao menos, uma paz breve de vez em quando.
Do lado de lá da estrada, iluminada e subtil a casa fantasma deste instante. A casa onde já estive. Pressinto não conhecê-la, não a identifico neste exacto momento, sinto que nela alguma vez terei estado, vivido segundos de prato vazio não na mão comendo restos de feijão, ou era onde Lúcia morava? Bati com raiva e força os portões sem guarda. Respondeu-me uma voz masculina e feroz, reagi sem medo tremendo sozinho, com coragem, reagi sem medo que nunca tenho! No estado em que estou, ah, claro, quem poderá descobrir quem sou? Olharem-me ficarão apenas com a sensação de ser um fantasma, estarei protegido pelo azar que me roubou a essência visível da existência… não tenho pele. E um rosto assim não deixa margem, não uso couraça, uso o meu azar. Um portão de sinos, sem campainha, num tempo em que não existiam ainda.
Já na sala. No sótão há vento e tempo. No claustro do vago há mar. Há viagem. Viajei tantas vezes. Sempre que viajo.
Por dentro deste escuro onde moram vozes que me contas, Vens tão raramente, que era feito de ti? E senti ou ouvi, não sei se de verdade ou pressenti, imaginei certamente e não estava ali eu, de badanas nuas, riscos num casaco estranho e mãos soltas quase içadas, uma visível e a outra ficou algures, pelo caminho ou perdida por dentro do corpo que estalava pedaços da carne sem dores e sem futuro, Quero estar na tua cama e dormir, ate de novo conseguir fugir Lúcia, sabes quem sou ainda? Que perguntas fazes, que me perguntas se não sei que dizes? Estas na mesma ainda, adivinho, jamais esquecerei as margens flutuantes dos teus lábios que um dia comprei sem dinheiro, adquiri caminhando, com o esforço da minha vontade, do meu querer, ate merecer tê-lo, e tento mais neste instante, que seja poder deitar-me num solene e raro repouso que desconheço, que significa então descansar?
Acordo. Frequentes e frequentes perturbações que me despertam a esta terrível passagem de vidas da vida dos homens desta vida, onde fui outro e sou nada agora, falei de como imaginei que ele fosse, parco em confusos espectros, passagens por aqui, vigias na tua casa, na tua terra, onde existia além um rio, Não o vejo agora, lembras-te Lúcia? Que é feito dele? Passava ali, depois da estrada, levava quem se passeava num turístico desdém, procurando saciar o desconhecido, olhando as margens da floresta naqueles barcos ferrugentos, antigos, confortáveis, mas não sei, digo apenas porque me pareciam sê-lo… depois disso morri.
Não sou outro nem o mesmo, posso enveredar pela diferença que necessite.
Num oportunismo do instante. Num calor que busque. Quero a mão Lúcia. Ainda a tua mão. Quero os beijos ainda Lúcia, os beijos ainda vivos. Secos no tempo e no temporal meteorológico do vazio. Com espasmos de nada. Feito em nada. Transformado em quem me desejo. Acertas nas coisas do tempo, tenta acertar em mim.
Pensei vestir-me de Maria. Assim sorriria sem me esconder. Saía à rua e passaria por todos os contornos da avenida desta cidade, bebia em todos os bares da minha, ninguém saberia quem era, se outro ou eu, se ainda ali estavas, nem te apercebias também, com as capas coladas à minha pele, pensarias num eu longe ou procuravas, ou ficavas como agora na sala do teu castelo, de portões cerrados de vento e sem campainha, onde toquei e não vieste tu abrir, se não conseguiste ouvir ou não te apeteceu atender-me. Mas não agi. Nem me vesti. Continuei nos escombros dos meus restos despidos de pele perdida, e ali permaneci até que enfim, continuei, mas nunca deixei de me pensar, talvez como uma solução do momento, satisfazer a circunstância, ser relativo e breve e sacudir o momento, ou morresse rapidamente uma morte aparente, rara e vaga, e confidenciasse a circunstância de lágrimas cravadas na pele perdida de quem antes fui e me despiste de ti, Agiste simplesmente e claro aceitarei Lúcia, ali, outro e qualquer canto, outro e todos os lugares vencidos pela realidade que justificadamente nunca acontecerão. Logo, e sorrio. Se puder ou deixarem a minha marcha ser fecunda. Infecunda, absorvente ou absorta, periclitante será e isso sei, a tua recepção daquele apelo urgente que viera como vento, até incomodar não sei o quê. Ao menos se viva. Sobreviva. Ao menos se explane a minoria do que acontecer para que cresça de vendaval ate uma realidade, escritos de tanto nada na tela do meu peito. Antes de mim, perdi-me. Mas continuo entre as duas viagens e duma sei, neste rio da tua cidade, defronte à janela as tuas lágrimas secas, ou falas, a verdade que jamais esquecerás, e agora eu, nota, eu, se for eu amigo, dele não esqueces nunca porque ninguém pode esquecer tanto mal, e mal de verdade, entranhando-se na essência dos sonhos e dos constrangimentos de cada um, ele amou e eu jamais amarei. Ele tem pele eu perdi já tudo, Mas linda ainda estás, nunca mais te vi. Se pretender e colar aqui, algo díspar ou falso, que invento enquanto, solenemente me dirija, como conseguir ser, como pretender e tiver mesmo de ser, sobre estas maculas da vida árdua, de duros e rijos presságios, se poder recolocar nas areias desta estrada de tua casa, perto desse imenso longe de tudo, obscuro e escondido silêncio, a tua voz perdida do essencial por que querias, escondes não faz mal, invento como evitar-te, porque me impossibilitas de encontrar-te, Abre a janela então, de sorriso mercante de navio do longe, do bravio sussurro, a tua mão estendida no escuro das portas de Marte, Lúcia… ou que sejas, sobre a pele que a vida marcou perante as ausência essenciais terei ainda assim, esconder do absoluto a exposição da frágil figura dos meus olhos, depenados de inconstâncias e dores psicológicas, mas de momento, tranquilizo-te, durmo ainda.
Na tenda anterior a estes dias, num provável Agosto antigo, num presumível lugar hoje não existente provavelmente, acoplados os nossos cheiros e quem sabe lá ainda, restam garantidamente os resquícios ainda das lágrimas, na areia preta da noite, barafundas mesmo e que seja, que mais conseguir de lá sacar desse antigo e passado perdido, ou encontrado nos instantes das inconstâncias e memórias do sono, encontrarei certamente em instantes como esse o pensamento que me faça revive-lo mesmo que por momentos, transformá-los em actualidade que me alimente de almas e desejos, quando ainda eu era, rebolávamos escondidos aquele esquecido instante roubado entretanto por alguma coisa que trouxeras na manga, ou escondido o meu exacto projecto de vida aqui, hoje, antes de mim antes, anterior a mim eu, um outro provável eu, ou se era quem sabe, um semelhante barqueiro enfeitado nas embarcações de Inocêncio, que fui ou serei agora, vestido na tua pele ou na alma, quando me beijas agora e sentes ser, se me pensas outra coisa, que importa então? Não mais virás, garanto. Enquanto me imaginavas vago e vazio contavas a história da tua vida. Nem mais verás, tenho a certeza. Sonhas ainda? Ah, não.
A casa fechada entre as mãos curadas. Cerradas pareciam destino de ferias, de contos e reverendos sem mais que pele ali, antes da saída de nos dois, onde nunca estivéramos, sei, juntos, ou num dia qualquer pudéssemos captar como mensagem emergente de urgência, de pedidos colados num postal ouvir a voz partir de dentro da noite os corpos, sequiosos e quase se inventavam, num horizonte díspar, quem sabe se podias, nunca havias tido, nunca pressenti nada mais que esse tão simples ou oculto ou raro e belo ao mesmo tempo, Assim podias consumar a casa de janelas fechadas e cantar ate mim. Se fosse assim tão fácil, que pedi então mais que isso?
Nas ruas, magotes de raros passos, de tudo e todos, ali seguindo todos os vãos, e nada vãos, todos os momentos como quem inventara também, sentia como eu as mãos dele, dadas aos outros e ninguém consigo, nenhum em si, vazios os espelhos encontram as pedras que saltam e se soltam das calçadas mal coladas, Inocêncio queria entrar, fazer parte da casa, abrir e fechar diariamente portas também, ver crescerem os filhos que a mãe deixara em casa, de plumas e calções rasgados junto aos bolsos, ou inocentes também como um pai que ele foi antes da vida mudar os rumos descalços de quem esqueceu de si mesmo os laços dum lar que a vida morta ali deixou. Antes foi marinheiro. Viúvo, vive em qualquer parte da rua. Que importa de facto, se haver ou não lar a melancolia renasce a cada instante? Por isso há sempre em tom alto em cada passo uma voz, Inocêncio ensina-nos como navegar.
Pelos cinco dedos talvez, como esculpidos e falsos, onde apontam o vazio dos tempos que te foras sem tocar a ordem dos que aqui ainda esperam sinais para nada, inventemos como, que sejam talvez e raras sequências num portal antigo, antigo o areal dos amores descarnados na fantasia abrupta da circunstância, incisiva e inconstante, Se fossem prostitutas estariam as ruas sem frio… há sempre como iluminá-las, sempre como eliminá-los, tanto faz se quiseres ao menos a minha inexistência.
Vazias as ruas ainda, enfim, vazias como sempre, enfim, onde ritmos triviais a preenchem, mesmo vazias, ou repletas, cíclicas e rotineiras incursões, nas mãos de Lúcia, o rosto que se busca e busco, como maresia, como heresia, como dispersão? Se ao menos se confunde com depressão. Se ao menos se buscasse outra solução. Entrar pelos fundos desta mórbida distância, pisar paulatinamente e talvez atenção também, os corredores longos desta casa escondida sempre, deste marasmo onde os meus braços haviam em tempos estado, libertos do resto do corpo que nunca os acompanhou nesta viagem, levando sempre em atenção os conselhos do amigo memorizado, Inocêncio sempre me dizia que nunca devia entrar por esta habitação antiga e quem sabe mal ocupada, preenchida de recordações esquecidas na lenta dispersão dos tempos, ou pretendíamos morrer antes ainda do amanhecer. Mesmo antes de Lucas ainda, ou que não tivesse ainda surgido na memória dos meus passos escamoteados pelas inconstâncias e encobrimentos vorazes da natureza substancial dos meus instintos ou desejos, sempre que me soube apelando-te, sempre senti com que indiferença os ressaltos da tua ausência se infiltravam devagar os desejos de emancipação, fazendo de mim um outro qualquer sem significante importância.
Como se imaginariamente me pendurasse nas asas dum corvo e fosse deste sempre alguém que visse das alturas a natureza desmembrar-se, a natureza as vezes desfeita como um sonho pintado sobre a areia de tantos mares, efeitos de mal feitor, atirasse sobre as casas preenchidas e coloridas feios efeitos e contornos que enervassem a minha vista, ser uma chuva de ácidos grossos e perfurantes, derramando-se sobre as casas desta triste cidadela numa falsa ilusão, desfazendo-me contra os muros do tempo num grito de desespero, até que eu próprio me ouvisse e solucionasse de forma ágil tremenda dor. Os meus miolos esbarrados contra a natureza do meu sonho. Às vezes, com calças de outros e mesmo as de Inocêncio, num mínimo gesto como que apelando uma calma peculiar só nele. Aprenderia a voar, acredito.
Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Ao Fundo Pitangas