Foram apenas horas passadas e secaram no vento como silêncio. Foram apenas momentos que o presente pretendia para divagar. Foram apenas delírios e ilusões, que convictamente nos mergulharam.
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És em lingerie só sei, de norte a sul, a silhueta branda dos teus rumos que loucura e pronto se te somo nos meus delírios, prefiro-te côncava e mais não posso, ao que digo? Falange, resto e soma das partes sem ti nunca, és complemento e momento? vem, avarias-me o olhar de peitos por voar, de corpo sem lugar em lingerie tu, sensação nunca nem sei embora aqui, me deito sobre ti como tu.
Abre devagar o tempo, na nudez vital do teu sossego, na nudez cantal, rural, pardal e comigo sonos? e de pernas em jeito de voar eu ver na lua a rosa perfeita dos teus solavancos obtusos a rirem-se a mim e ir eu até lá, despido e desprovido sagar dentro de ti esta fome de vida!
Dorme. Desértica. Sobre a plaina solene, da manhã ali entregando-se, divinal, riacho navegando as muralhas de terra que se amparavam, adiante, dorme.
Respiras devagar, sei, tal como Singapura, anoitecida à hora que for, que importa impedir com sensações, serões, a mão dada intermináveis instantes, respiras ainda e sempre enquanto por cada passo sustentares o peso sem horas, vagens e folhas entre a sombra, dormes, como sonata inebriando sagazmente o frio que rompe a saudade.
Há momentos para dar até ao fundo de nós. Seguir sem desdém, o que importa mais? Entre muros, singrar entre ferros, partir, sentir no âmago um sonho voraz, vibrar como luz e deixar, de repente, o corpo arder como chamas de ficção e um sol despertar. Que importa mais se faço amor contigo em troca de nada? Sim, faço amor contigo em troca de nada.
Sente como jorra a madrugada e até a lua pergunta por nós. Sente como ficam as plantas desse por aí adiante, quando não nos sentimos entregues e desfrutamos por aí. Até todo esse sei lá qual por aí pergunta o que é feito de nós. E as árvores cúmplices do meu coração choram. A solidão e tanta ausência de um amor com o qual partilharam. Quando nos viam sugar o desejo e a euforia dos belos instantes, partilhados e ecoando esse natural deserto sem nada por perto. Por dentro e fora do corpo. Da mente. Sentia a razão ali. Há tantas coisas sei lá, quem são, a fazerem-me perguntas ao coração. Há tantos sonhos que morrem pela manhã, quando abro os olhos, e em redor de tanta realidade, apenas se sente que aquilo, que tanto fora, terá significado um périplo divagante, entre almas que ansiavam fumegar os sub-reptícios invólucros do êxtase.
Que é feito daquelas horas enormes, sugadas sob o sol, envoltos num calor que nem sequer sentimos. Nem mesmo quando já derretíamos, quando ainda se sentia valer a pena. Perder a vida naquele instante mesmo que jamais ressuscitássemos. Que é feito da euforia e dos desejos, das palavras e do carinho? Que é feito da beleza, sinceridade, vontade, bem-querer? Que é feito da infinidade prometida e amor eterno?
Foram apenas horas passadas e secaram no vento como silêncio. Foram apenas momentos que o presente pretendia para divagar. Foram apenas delírios e ilusões, que convictamente nos mergulharam. Foram apenas fantasias que com a sedução nos deixaram ser apenas “deixa ir”, e as almas que se ansiavam tanto de repente despertaram. E já não vibram. E já não olham. E já não querem. E já não perguntam. E já não amam. E já não se perdem. E já se encontram no devido lugar de voltar ao leito sem resgates. Recolher o ímpeto da vontade e dizer adeus. Até qualquer dia. Sem terminar nem começar aquilo que foram horas, e apenas fica a memória das coisas que nunca valerão depois de terminadas.
Quando as coisas te perguntarem por mim, diz-lhes que estou por aí. Não lhes mintas nem ignores, responde-lhes com o coração, como se elas fossem aquele jardim das tardes infinitas do corpo rendido. Como se elas tivessem feito parte integrante das confidências. Como se elas tivessem sido a toalha que nos limpou. Ou qualquer coisa que nos ouviu e nesse silêncio nos protegeu.
Irás deparar-te com imensas perguntas das almas. Irás vislumbrar tantas vezes com as luzes e atira-as ao mar. A soma imensa de coisas que nem sequer já lembramos. A vontade tremenda que foi esfaqueada pela ordem e submissão. Responde-lhes. E diz-lhes sempre em que tom, vertical e recto, a verdade de que era sonho, sonho verdadeiro e puro como os sonhos que sonho todos os dias. E terminam quando me levanto, pego as coisas triviais e sigo a uma rotina que me obriga a estar acordado e seguir. Partir sempre sem que deseje voltar ao mesmo lugar, às mesmas horas, às mesmas coisas, ao mesmo fim de sempre. E dormir novamente como anteriormente, pausadamente um conforto que pouco importa e durmo. Esquecerei pela manhã, na próxima manhã, como em todas as manhãs de hoje em diante e todos os sonhos serão a companhia de todos os momentos desse amor louco.
Que um dia o amor virá e sentirá, todas as árvores esquecerão jamais. Como se a fotografia desses momentos eternizasse esse amor. Por todos os lugares onde dividimos com intimidade e verdade, e é por aí que ela se encontra, porque é inesquecível e belo demais, não vai morrer nunca, e mesmo que eu morra, tê-las-ás sempre nas imediações dos teus passos e destinos.
Há dias, num esfoliante tinir de pedras arruaçadas uma carroça de burro nos cartazes espalhados pelos alpendres, o cheiro azedo sob um quente descalço nos murais esquecidos da cidade, um quente esfoliante de tremores crus e verdade como esponjas secas a zurzir devagar, quase um tic-tac a entrar-me ouvidos a dentro num repente desvanecido.
Lá fora, atrás da noite da correnteza lúdica, os meus passos num torpor de morte a caminho de que algo óbvio me aniquile, como nos azedos acres deitados ao lixo apenas num disfarce. Embrulhos de papel e depois, oferecer-me pelo natal dos meus desígnios sequiosos da floresta. À sombra, esquecê-lo, como se me tratasse impróprio e com desdém, desinteressando-me, cáustico, neste rol acústico de invenções escurecidas de gente vestida como os gringos neste farwest castanho e sem cavalos mas com burros, anunciando-se como sendo para um filme, escarrapachado no tinir acre deste chão fulgente, dos cascos barulhentos em sequência, indo não sei para onde.
Agruras por mim a dentro num silêncio mórbido como se até as ouvisse cantar requiens do fim, alma de cavalos selvagens e aglutinarem-me o mais vagarosamente possível numa lentidão de tonturas.
Talvez porque em criança me irritavam os sons surdos da vida. Não gosto de cavalos que imitem os sons dos burros, usem cascos de burros, andem a trotear sentenças pelas quintas lúdicas dos ricos!
Disso não gosto, já em criança detestava.
Se pudesse sentar-me, ficar sentado à janela dos demónios e difundir contra eles ou com eles as minhas mágoas, tentaria com eles desabafar, conversar ou mesmo desconversar, obrigá-los a voar e a mostrarem-me se na verdade, e como sempre ouvi dizer, são feios e com cornos como os diabos e se digo diabos, incluo-os no plural dos meus sentidos. Talvez um escuro decifre esta minha dúvida. Apagando as luzes, quem sabe?
No escuro disfarçado em dores, numa cama avulsa onde corpos me mordem, o gelo mórbido de que foram vozes contra e a favor, mas silêncio, se soubesse ler entenderia a tua mensagem com desenhos e esquilos nesta noite fria, por enquanto na rua eu, ninguém me dissera que lhe pertença, sinto-me numa aldeia alentejana, que por acaso conheço, a minha mãe dizia chamar-se Odemira, perto de que Grândola, sem hospital, o vazio da estrada navegava pelas almas, cordas expostas na falência do entusiasmo, e árvores plantadas por António Simões de Castro Sereno, filho único de um casal de acaso. Será?
O Alentejo nas suas lezírias, nas suas únicas cantigas que ouvira estes últimos tempos, saibam que não eu, que nem sangue de lá possuo.
Mas por que me insultam?
Uma casa rosa seria, não sei, recuo, sempre recuos, sinceramente!, uma voz, Dalai Lama nos ecrãs inócuos desta televisão que me entorpece, reabastece de mais uns quantos gramas de vontade de fugir do meu passado, temo ouvir coisas breves ou nenhumas, a loiça afoita e o lavador estendido por baixo do carro azul abandonado numa esquina a horas de morrer como morrem os rios, isto confunde inocentes, ou seja, baralha quem nada sabe de mim, quem nem sequer me conhece, nunca de mim ouvira verdade alguma mas continuo e porquê?, nadar amigo, nadar sobre as águas brilhantes da vida, da tarde, enquanto te penso possa sentir-te, falácias, falácias, dizem, árbitros na jarra.
– Se ao menos me amasses, um amor não morre, deita-te comigo nesta sala de tantos, um abraço apenas.
– Dou.
Ar de cebola, o meu rosto bebe este ar de cebola, choram os olhos pela cebola a navegar os restos crus ainda desta casa onde só sons, o resmungar do frisson permanente, nem que vazia a sala, um ar escondido pelos rostos que disfarçam, nem temo coisa alguma, sempre me guiei por esta coragem de vencido e que importa, nem sempre os vitoriosos são os que ao fim de tudo ganham, a cebola acérrima nesta cozinha levada a ombros, ouço os golos no estádio, aqui ao lado, sei lá que mais, ou dele, ou dos golos, se deixar de ver deixarei de beber o líquido das tardes desvanecidas no silêncio morto dos meus desejos.
Chovem cântaros sobre este silêncio arrumado nas amálgamas. O dia floresce vazio por que horizonte sei lá, lá fora o brilho nas chapas do tempo e caminho, lá fora, cá dentro, lugar nenhum. Um dia esperarei as tardes na escuridão natural do alcatrão, levarei os meus restos quase fúnebres ao meu funeral, sinto ainda como morrer não seja um fim, um destino cinzento da vida, morrerei sozinho nas minhas mãos, encostado às minhas desvanecidas incoerências. Valer alguma coisa e resquício, nem me sinto, sou apenas o resto do que de mim restou, já parti para dentro dos meus desígnios como vidros estalados na madrugada. Cheguei da rua. Vim lá de fora. Dos restos esquecidos pelo tempo, pelo incauto, vim dos marasmos, das onças, dos matos, para morrer devagar nas tuas mãos se Deus quiser, até que tenha algum voto, puder de decisão sobre a minha ânsia vazia a escorrer devagar na sanita, preso aos destinos escorreitos da tarde desta casa sem regras, sem ornamentos sequer e é isto o que sou nem sequer importa mais alguma coisa tecer, como uma onça vadia que sou, sou todos os declínios verdadeiros plantados na parede da vida desta casa sem rumo.
Sou eu nela e nela o mesmo, um fundo seco que se deleita vagaroso sem rei nem roque e não sou coisa nenhuma, nem mar nem saudade, nem desespero, nem marasmo, sou escorreito, garanto, e morrerei no canto mais meu que o de Camus na sua lezíria, soçobrarei aquela viagem perdida entre Barcelona e Saragoça, o depósito vazio e apenas ar na alma, viajava ainda assim na esperança de chegar ao lugar-comum, sentir o meu peito palpitar ranços de mortal à espera do dia do embate e frente a frente dois pedaços de metal retirarem-me o direito à vida.
Fazes falta?
Quando há vida para além da morte, e não duvido!
Quando há gente atrás da porta, o que acredito!
Quando o destino respira forte, é o que sinto!
Quando um suspiro alivia o peito, sei como o ouço!
Este ar cansado de fim de tarde. Vontade de surdez, nem os passos se ouvem, nem o eco do silêncio. Profundo sob a floresta repleta, o sol penetrava-a com pequenos raios que vagueiam e dançam por entre a folhagem, coloridos e longos, estatelando-se felizes e cansados, e cansado eu ainda, o meu sorriso disfarça-me de mim mesmo, caminho devagar pelo húmido esquecido, e quase fim de tarde.
Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Ao Fundo Pitangas
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