Perguntava-lhe sem levantar os olhos da folha de papel onde devagar, escrevia sonhos de criança em verso e rima, perde-se a tinta, o tempo, o dia, a banheira preparada para que banho nunca mais.
6
(NÃO ENTRES TÃO DEPRESSA NESSA NOITE ESCURA).
E num ápice o devoro, pela noite fora, raios de sol pela janela começam por despertar a manhã a abrir-se, interrompem-me por instantes o momento, a janela semifechada ou semiaberta, tanto faz, quando já ia pela página quinhentos e trinta e dois:
(o meu marido a cobrir-me a página com a mão e a humidade na tampa dos meus caixotes de lixo meu Deus, toda a gente a dormir e a humidade na tampa dos caixotes do lixo, as palavras tão nítidas
– Clarinha
O meu marido esse
– Clara
Sempre, nunca outra coisa senão Clara sempre:
(Não escrevas por favor não escrevas é a tua mãe quem está a falar a tua mãe a tua mãe não podia falar assim és tu.
ANTÓNIO LOBO ANTUNES).
Nesta maresia árdua os sonhos são rios. Quem sabe restos de uma sede por dissecar.
– Talvez não durma ou nunca mais acorde.
Esta rua, que desce os declínios mais absurdos da existência saiba beber devagar comigo este pastoral devaneio, este resquício é lado nenhum, dizem as vozes nómadas da cidade, dizem as petulâncias vertidas no sinal vermelho na esquina, mas certo estaria, eu mesmo aqui, na jaula vernácula da tua voz, eu, ou que casa a tua me sentenciasses o alimento que exonero sob que bocas me disfarcem.
– Bem-vindo Aristófanes!
Ou que doutos da filosofia antiga me orientem dotes de comportamento sinusoidal, ecos de aforismo, de falanges e nadas ali acoplados na esfera do caminho nada, nenhum outro sinal de regozijos a ajudar.
– Diria farto, enfim!
Tudo será diferente, dizem os dogmas encalacrados na parede, nada se resumirá ao silêncio das estepes, dizem os viajantes do nada e eu, como se eles fosse, nessa viagem que não é mas é como se fosse, vestido de nenhum alguém também de roupas e tudo, o fato não é síncrono, nem metástase, nem coisa alguma, digo eu. Se morrer é ali.
(bem-vindo Aristófanes).
Nesta maresia árdua os sonhos são rios. Quem sabe restos de uma sede por dissecar.
– Talvez não durma ou nunca mais acorde.
Esta rua, que desce os declínios mais absurdos da existência saiba beber devagar comigo este pastoral devaneio, este resquício é lado nenhum, dizem, as vozes nómadas da cidade, dizem, as petulâncias vertidas no sinal vermelho na esquina, mas certo estaria, eu mesmo aqui, na jaula vernácula da tua voz, eu, ou que casa a tua me sentenciasses o alimento que exonero sob que bocas me disfarcem. “A nossa pátria é onde nos sentimos bem”.
Cavamos do medo segredos, fugimos da palavra como quem engole um sapo a saltitar no quintal da mentira, sim, como se Atenas ainda nem sequer pensar dizer o que no incumbe a vontade, a vocação, o destino:
– Deita-te comigo esta noite nem que seja a última coisa que faça na vida, Eritreia.
Lurdes Schling? Lurdes Schling passa, entra para a cozinha, os passos arrastam-se pelos tacos sem verniz do corredor, um cheiro a laranja, ardem-me os olhos e fico calado, é mentira eu estar ali, é tudo mentira e nem os passos são verdade, o chão de tacos de madeira por envernizar do corredor também não é verdade, os passos não existem e eu nada vejo nem ouço, Murakami levanta-se, dirige-se a ela, o lixo das ruas numa calma de bramar encostado à parede numa paz que impressiona, o lava loiça tombado no lavatório e a torneira a escorrer como se uma chuva incessante na banheira que transborda:
Murakami a escrever-lhe a versos na tampa do caixote do lixo, em restos de papel descobertos que tirara do caixote do lixo, e tudo vai acabando por ser lixo até um abraço que nunca chega, uma voz sempre calada na cozinha e não há ninguém na cozinha a não ser o caixote de lixo repleto de restos da vida:
– Lurdes, viste o elefante a passar?
Perguntava-lhe sem levantar os olhos da folha de papel onde devagar, escrevia sonhos de criança em verso e rima, perde-se a tinta, o tempo, o dia, a banheira preparada para que banho nunca mais.
– Lavei-me com a chuva e digo, gostei, soube-me tão bem sentir-me abraçado por essa obra de Deus, ai se não chovesse nunca!
As paredes crescem. Os muros surgem como morros de salalé, à minha volta tudo escurece e manhã ainda:
– Libéria.
Dizia Borges:
– Acho que estou a ficar cego.
E Libéria nem nada.
Aquela cidade dormia devagar. Naquela noite nem um suspiro. Apenas o arfar delicado de corpos expostos às delícias se sentiam como se por ventura dois corpos deitados num delicioso tinir de membros e gestos se fizessem entender, um ao outro, num devastar estranho de cósmicos desejos a inalar por entre as palavras:
– Como arde!
Sucumbia ela, e ele, nem uma palavra. Talvez fugindo sóbrio sob a sensatez nómada de como se amam sigilosos num tom de amantes fugazes pelas entranhas da vontade, e ela, num regozijo forasteiro, (estavam na casa dele) tremia, embora mais num à vontade que mais parecia verdade:
– Como arde nas carnes!
(… quando a cidade acordar o caminho virá aconchegar-te. Abre esses olhos perdidos senhor, que esta manhã te trouxer.
Vozes unidas para ti, unem-se no kimbo para te amar, para te amar e te ver, mesmo que ver-te não chegue.
Vamos unidos dançar.
Vamos unidos abraçar-te!…)
– Onde?
Uma estrada pode ficar tão vazia como uma garrafa de bagaço?
– Não imaginava.
Ou cheia como o tédio e o sargaço, o relento disparado no olhar perdido, nas manhãs que se abrem, sobram, vozes imaculadas na berma da vida a um avulso qualquer e assim despertar.
As vozes ensinam, sabias? é na voz dos outros que abrimos a nossa própria voz, vem delas, crescemos assim, aprendemos com os sons maternais, digo maternais não matinais embora os matinais sejam também um regozijo. Que seja.
– Tiveste mãe?
– Tive mãos, amigo.
Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Ao Fundo Pitangas