Nenhum país pode rebaixar a classificação da Covid-19 e determinar a mudança de status de pandemia para endemia, seja por meio de decretos, atos normativos ou portarias. O Brasil não está numa redoma, isolado do resto do mundo.
No último dia 13 de abril, a Organização Mundial da Saúde (OMS) comunicou que a pandemia de Covid-19 continua a ser uma “Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional” (PHEIC, Public Health Emergency of International Concern). Neste domingo de Páscoa (17/04), destoando da decisão da OMS, o Ministro da Saúde Marcelo Queiroga, anunciou em cadeia nacional de rádio e TV, que irá editar um ato normativo para encerrar a ESPIN (Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional), pondo fim ao estado de emergência devido à pandemia de Covid-19. Queiroga justificou a decisão com base na situação epidemiológica favorável, na boa cobertura vacinal da população e na capacidade de assistência do Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, a justificativa para esta medida é outra: 2022 é ano eleitoral!
A retirada da condição de ESPIN pode impactar diversas ações de combate à disseminação da doença como o controle das fronteiras, estabelecimento de quarentena, adoção de passaporte vacinal e de máscaras em locais fechados, realização de testes para diagnóstico de Covid-19 em farmácias, teletrabalho e telemedicina. Também pode afetar medidas de controle da doença, como por exemplo, ampliação de leitos de hospital, compra de insumos e materiais hospitalares em caráter emergencial, mobilização de servidores, aplicação de vacinas aprovadas pela Anvisa em caráter emergencial e temporário, como a CoronaVac (apenas as vacinas da Pfizer/BioNTech, AstraZeneca/Oxford e Janssen/Cilag possuem registro definitivo), uso de medicamentos como sotrovimab, evusheld e o paxlovid, que contam apenas com autorização de uso emergencial aprovado pela Anvisa.
Para que as vacinas e medicamentos contra Covid-19 possam continuar a ser usados, a Anvisa teria que prorrogar a autorização do seu uso emergencial quando da publicação do ato normativo. Em nota publicada no dia 18 de abril, a Agência informou que o Ministério da Saúde já solicitou a prorrogação do uso emergencial por um ano. A aprovação da solicitação ainda depende de análise da Diretoria Colegiada da Anvisa. Muito provavelmente, a ESPIN não será revogada de imediato e teremos um prazo de algumas semanas entre a edição da portaria e a data real para marcar o fim da Emergência em Saúde Pública.
Vacinação e vigilância – Graças ao avanço da vacinação, o cenário epidemiológico é favorável, porém estamos longe do fim da pandemia. O Brasil registrou 65 óbitos causados pela Covid-19 nas últimas 24 horas, atingindo média móvel de 98 mortes nos últimos sete dias. Desde o início da pandemia, a doença já tirou a vida de pouco mais de 662 mil brasileiros e brasileiras (número que não leva em conta a subnotificação). Conforme dados dos cartórios de registro civil, a Covid-19 é a doença que mais mata no país. O número de casos vem caindo, mas ainda registramos 10.393 novos casos nas últimas 24 horas, com média móvel de 14.252 casos nos últimos sete dias.
Até o momento, 88,3% da população vacinável, com cinco anos ou mais, tomou a 1ª dose da vacina e 81,4% da população com cinco anos ou mais tomou a 2ª dose ou a dose única. No entanto, a cobertura vacinal de pessoas com 18 anos ou mais que tomaram a dose de reforço é de pouco mais de 51,8%. Com relação à vacinação infantil, desde o início da campanha em janeiro de 2022, apenas 56,2% das crianças na faixa etária 5 a 11 anos tomaram a primeira dose e pouco mais de 28,9% tomaram a segunda dose. O país precisa avançar na vacinação infantil e na aplicação da dose de reforço em pessoas com 18 anos ou mais, em programas de testagem da população e vigilância genômica, o que permitirá a identificação das rotas de espalhamento e transmissão do vírus e de novas variantes de preocupação.
Também é importante que a CoronaVac seja aprovada pela Anvisa para vacinação de crianças de 3 a 5 anos. Após parecer das sociedades médicas e dos estudos enviados pelo Instituto Butantan, a Anvisa solicitou novos dados sobre a CoronaVac para crianças de 3 a 5 anos:
1. Dados que demonstrem qual é a proteção conferida pela vacina CoronaVac em população pediátrica após no mínimo 2 meses, idealmente após 3 meses, da vacinação completa com o esquema primário de 2 doses, em cenário de predominância da variante Ômicron;
2. Protocolo de estudo de efetividade da vacina CoronaVac em população pediátrica no Brasil que inclua a avaliação da duração de proteção conferida pela vacina em população pediátrica;
3. Protocolo de estudo clínico para avaliação de imunogenicidade e segurança da terceira dose ou dose de reforço da vacina CoronaVac em população pediátrica (todas as faixas etárias);
4. Dados integrados de segurança apresentados como suporte para esta solicitação de ampliação de uso, em um formato de um relatório único com a visão geral de segurança da vacina CoronaVac para crianças de 3 a 5 anos;
5. Relatório clínico com os dados atualizados do estudo clínico de fase III (PRO-nCOV-3002-1), conduzido na China para avaliação comparativa de imunogenicidade em crianças e adultos;
6. Relatório clínico com os dados atualizados de eficácia, segurança e imunogenicidade, do estudo multicêntrico de fase III, conduzido na África do Sul, Chile, Malásia e Filipinas, para avaliar a imunogenicidade, segurança e eficácia da vacina Covid-19 (Vero Cell), inativada (CoronaVac®) em crianças e adolescentes de 6 meses a 17 anos.
Um estudo de fase 4 da Fiocruz Minas, envolvendo 1.587 pessoas vacinadas, mostrou a importância de uma dose de reforço com a vacina da Pfizer/BioNTech para quem tomou duas doses da CoronaVac, em esquema de vacinação heteróloga. Os dados indicam a importância da resposta de proteção induzida pela CoronaVac após duas doses e como esta resposta se torna ainda mais robusta após aplicação de uma dose de reforço com a vacina da Pfizer/BioNTech, protegendo contra as variantes Delta e Ômicron. Mesmo para idosos acima de 60 anos, onde os níveis de anticorpos entre o quinto e o sétimo mês após a segunda dose foram menores que em pessoas entre 18 e 30 anos, a dose de reforço da Pfizer/BioNTech restabelece a resposta imune.
O estudo da Fiocruz também destaca o valor da imunidade híbrida, visto que participantes que tiveram Covid-19 e depois foram vacinados, mostraram índices de anticorpos superiores após a vacinação, quando comparados com os voluntários que não foram infectados. Outro estudo do projeto VigiVac da Fiocruz,publicadona revista Lancet Infectious Diseases, mostra a efetividade das quatro vacinas contra a Covid-19 em uso no Brasil (Coronavac, AstraZeneca, Janssen e Pfizer-BioNTech) em aumentar a proteção contra desfechos graves em pessoas previamente infectadas pelo Sars-CoV-2.
Embora em queda consistente, ainda temos um número alto de casos e de óbitos. Que fique claro: apenas a OMS pode decretar o fim da pandemia. Nenhum país pode rebaixar a classificação da Covid-19 e determinar a mudança de status de pandemia para endemia, seja por meio de decretos, atos normativos ou portarias. O Brasil não está numa redoma, isolado do resto do mundo.
Para a entidade, o vírus Sars-CoV-2 segue em evolução considerada imprevisível, com ampla circulação e alta taxa de transmissão em humanos, causando altos níveis de morbidade e de mortalidade em populações mais vulneráveis nos países de baixa renda, com baixa taxa de cobertura vacinal e que ainda há risco de disseminação internacional. A OMS mantém a meta de vacinar 70% das populações de todos os países até julho de 2022, com prioridade para profissionais de saúde, idosos e grupos de risco. Até o momento, 65% da população mundial recebeu pelo menos uma dose, o que representa 11,47 bilhões de doses de vacinas aplicadas. Ainda segundo a OMS, 64 países, incluindo o Brasil, atingiram 70% de vacinados. No entanto, apenas 15,2% das populações mais vulneráveis em países de baixa renda receberam pelo menos uma dose e há 21 países com cobertura vacinal abaixo de 10%, incluindo países em zonas de conflito.
Cenário epidemiológico atual – Em virtude do avanço na cobertura vacinal, o cenário epidemiológico vem melhorando significativamente no Brasil, com redução da ocupação das unidades de terapia intensiva (UTIs) para Covid. Dados do Boletim do Observatório Covid-19 Fiocruz, divulgados no dia 08/04/2022, mostram tendência de queda de indicadores de novos casos graves, internações e óbitos por Covid-19, destacando que, pela primeira vez desde maio de 2020, nenhum estado brasileiro superou a marca de 0,3 óbitos por 100 mil habitantes. Sem dúvida, estamos vivendo o melhor momento desde o início da pandemia, em 11 de março de 2020, mas não podemos deixar o excesso de otimismo contribuir para um relaxamento ainda maior.
Nova subvariante XE da Ômicron – Aparentemente, a antes temida recombinação entre as sublinhagens BA.1 e BA.2 da variante Ômicron (variante XE) parece ser mais transmissível, mas não suficientemente perigosa para ser considerada pela OMS uma variante de preocupação (VOC), assim como aconteceu com a Deltacron, que consistia em uma mistura das variantes Delta e Ômicron. Segundo a Rede Genômica Fiocruz, a sublinhagem BA.2, responsável pelo aumento de casos na Europa e no leste da Ásia, está se tornando mais frequente no Brasil. A tendência é a variante XE desaparecer, embora seja necessário constante monitoramento e vigilância genômica. A vacinação deve continuar, pois nós não podemos ignorar o risco de novos surtos e ondas de Covid-19.
Kit covid – Cloroquina, ivermectina, nitazoxanida e azitromicina, medicamentos comprovadamente ineficazes contra a Covid-19, continuam na lista dos mais vendidos no Brasil. Considerando apenas os medicamentos vendidos em farmácias, foram 97 milhões de unidades comercializadas em 2021 e 102 milhões em 2020, comparados com apenas 40 milhões de unidades em 2019. Ou seja, a farsa do kit Covid dá lucro!
Definitivamente, charlatanismo e trapaça não têm limites no Brasil e o discurso negacionista dos picaretas antivacinas e defensores do kit Covid virou um discurso de poder. E essa máquina de produção de desinformação vai continuar defendendo o kit Covid, pois são muitos os interesses financeiros e os dividendos políticos. Isso parece o que psicólogos chamam de efeito da verdade ilusória: uma mentira contada mil vezes, não vira verdade, apenas parece confiável para algumas pessoas em virtude da intensa repetição.
Diversos estudos clínicos sérios, padrão ouro, randomizados, com grupo placebo, mostram a ineficácia da ivermectina. Um estudo brasileiro recente muito robusto, publicado no The New England Journal of Medicine (30/03/2022) mostrou que pessoas que tomaram ivermectina e depois testaram positivo para Covid-19, tiveram um desempenho pior do que o grupo que recebeu apenas o placebo. Um editorial recente na revista British Medical Journal (BMJ) salienta os escândalos éticos e as fraudes por trás de estudos que mostravam algum possível benefício com a ivermectina.
Até quando vai durar essa trapaça?
por Luiz Carlos Dias, Professor Titular do Instituto de Química da Unicamp, membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico e membro da Força-Tarefa da UNICAMP no combate à Covid-19 | Texto em português do Brasil
Do Jornal da Unicamp
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