A ocupação do palácio presidencial por manifestantes, seguida da fuga do Presidente e de outros membros da sua família do país, marca um novo auge da profunda crise económica, social e política do Sri Lanka – a crise de um dos primeiros países a aderir à iniciativa emblemática da “Rota da Seda” chinesa, iniciativa que jogou um papel importante nos desenvolvimentos actuais.
Em 2007, sob a presidência de Mahinda Rajapaksa (o mais proeminente dos membros de uma família política do Sri-Lanka originária de Hambantota, no sul do país, e que foi eleito presidente pela primeira vez em 2005) as autoridades do Sri Lanka assinaram um acordo com os seus homólogos chineses para a construção de um porto de águas profundas em Hambantota.
Como Hillman (2021) nos diz:
“O Porto de Hambantota foi apenas um dos vários projetos duvidosos que Rajapaksa prosseguiu, muitos deles com o seu nome, localizados na sua base de apoio, e financiados pela China. Como conta a ‘Nova Estrada do Imperador’, as prioridades de Rajapaksa eram claras. Gastou menos de $6.000 num estudo de viabilidade para o que se tornou o aeroporto mais vazio do mundo, mas mais de $80.000 numa cerimónia com bailarinos e cantores para abrir prematuramente o Porto de Hambantota no seu aniversário.’
O projeto do Porto de Hambantota foi um precursor do que viria a ser anos mais tarde a ‘Belt and Road Initiative’, também conhecida como Rota da Seda, uma iniciativa chinesa analisada em profundidade por Wolf (2019) e que se encontra, de muitos pontos de vista, no centro da atual crise do Sri Lanka.
Como explica Hillman (2021): ‘a ideia remonta ao pai de Mahinda Rajapaksa, que representou a circunscrição de Hambantota no parlamento durante quase duas décadas até 1965’ e ressurgiu por iniciativa de uma empresa de construção canadiana num estudo que, segundo os ‘media locais, (…) não satisfazia os critérios do governo para um “estudo de financiamento”’. No entanto, tal não impediu as autoridades chinesas de financiarem este e outros projetos, por exemplo, o projeto aeroportuário acima referido.
Do ponto de vista económico, o investimento não era viável; no entanto, do ponto de vista político, foi um projeto prestigioso e simbólico para a família Rajapaksa. Pelo seu lado, o principal objetivo das autoridades chinesas também não pode ser visto como económico, mas antes geopolítico, como ficou claro quando em 2017 obtiveram o arrendamento das infraestruturas do Porto por noventa e nove anos.
Hillman (2021), assim como vários outros analistas, consideram esta construção financeira uma ‘armadilha de dívida’ – não necessariamente pela sua importância macroeconómica, mas porque se baseia em condições privilegiadas de empréstimo aliadas a um investimento insustentável.
Depois da derrota eleitoral de Mahinda Rajapaksa em 2015, em 2019 foi eleito presidente o seu irmão Gotabaya Rajapaksa. Mahinda foi nomeado Primeiro-Ministro; Basil, o irmão mais novo, foi nomeado Ministro das Finanças; o seu irmão mais velho, Chamal, tornou-se o presidente do parlamento. Namal, filho de Mahinda, foi nomeado Ministro da Juventude e Desporto – enquanto outros membros da família também foram distinguidos com cargos importantes na administração.
Como explica Aryal et al (2022), por razões endógenas e exógenas, a situação no país mergulhou em queda livre até à actual catástrofe. Os seus líderes resistiram até ao último momento antes de pedir ajuda ao FMI – uma missão da organização visitou o país apenas na última semana de junho. O Bangladesh (Casaca, 2021) e, mais em particular, a Índia (Wolf, 2022) prestaram assistência financeira; no entanto, a sua ajuda não foi suficiente para travar o aprofundamento da crise.
Para surpresa de muitos observadores, a China, o país visto como o principal patrono dos investimentos infraestruturais irreflectidos do Sri Lanka, e visto em particular como muito próximo do clã Rajapaksa, abandonou o país. Pequim não forneceu qualquer apoio financeiro ou político (Balachandran, 2022) – uma posição certamente observada de perto na região por Estados cliente da China, como o Paquistão. O novo primeiro-ministro do Sri Lanka, Ranil Wickremesinghe, anunciou iniciativas para pedir o apoio da USAID; no entanto, como o seu gabinete também foi ocupado por manifestantes (BBC, 2022) as perspetivas políticas da sua continuidade no cargo parecem pouco promissoras.
A esse propósito, o Chefe do Estado-Maior da Defesa, general Shavendra Silva, declarou: “Nós, os três comandantes e o Inspetor-geral da Polícia solicitámos ao Presidente que convocasse todos os líderes partidários para que se reúnam e nos informem das medidas que tomarão para garantir uma resolução política do atual conflito antes da nomeação de um novo presidente’ (O Hindu, 2022).
Este poderá ser um passo necessário para que a comunidade internacional encontre um interlocutor estável no país, e para que, em consequência, possa pôr-se em marcha um programa de assistência coerente. Em qualquer circunstância, a comunidade internacional deve encontrar uma abordagem coordenada capaz de enfrentar os desafios atuais – e esta abordagem, ao mesmo tempo que se deve basear no apoio em curso concedido por parceiros regionais como a Índia e o Bangladesh; organizações internacionais como o FMI; bem como as principais organizações nacionais de apoio a emergências, como a USAID, deve dar coerência a esses esforços.
O G-7 aprovou recentemente uma “Parceria para as Infraestruturas e o Investimento“, uma nova tentativa ocidental de responder ao BRI chinês – que surge exatamente quando, como mostra o exemplo do Sri Lanka, o modelo chinês está em colapso.
É necessária uma iniciativa mais abrangente, uma iniciativa que encontre a sua inspiração na construção que respondeu às consequências do tsunami do Oceano Índico de dezembro de 2004, construção que acabou por dar origem ao Quad.
A atual crise do Sri Lanka é um desastre feito pelo homem (contrariamente ao seu antecessor de 2004); no entanto, os seus impactos podem ser comparáveis e, em certa medida, ainda mais assustadores. É necessário reunir as mesmas forças que foram cruciais para lançar um programa de assistência na altura, com o apoio do G-7 e de outros líderes da comunidade internacional.
O sucesso deste esforço dependerá da capacidade da sociedade do Sri Lanka de encontrar soluções para a sua crise complexa; no entanto, também dependerá da determinação e sensatez destes líderes internacionais.