Doze pontos de reflexão sobre o ataque de Donald Trump à Síria.
1. Num lugar não escolhido ao acaso no mundo foi hoje conduzida mais uma operação militar, eufemismo banalizado no nosso léxico, indicador do quão militarizado e beligerante se tornou. Podemos optar por outro eufemismo com a mesma origem e propósito, o de ataque, que o ponto demonstrado se mantém.
2. Foi desenvolvida em território soberano de outro país, com um líder eleito – podemos discutir noutro plano a legitimidade do resultado dessa eleição – e o apoio de uma significativa parte da respectiva população – não é este o lugar para medir a origem ou dimensão desse apoio. Registe-se, para efeitos de reflexão, tratar-se do território soberano de um país com uma liderança política em funções.
3. Neste território decorre há já vários anos uma guerra civil, um conflito de natureza portanto interna. No entanto, é relativamente visível – quer por declarações públicas, quer por gestos, quer pela origem geográfica das armas utilizadas, que as partes envolvidas nesta guerra beneficiam, como acontece praticamente desde que a espécie desceu das árvores (e talvez até antes disso), de apoio externo, resultado de alianças e de interesses diversos também ele jogados nesse território soberano e obedecendo a decisões tomadas pela sua legítima liderança política. Assumamos, então, que decorre neste território um jogo de dimensões que o ultrapassam, ou seja, apesar de sujeito a uma soberania territorial, é também submetido à consequência de decisões que são tomadas àcerca dele por agentes que, em grande medida, a ele não pertencem.
4. O actual modo de reflexão e acção política nacional reserva-se o direito, por razões que já nem discutimos entre nós, de não apenas opinar mas inclusivamente de intervir em territórios soberanos para os quais não somos convidados, quer a exercer palavra, quer a exercer gesto. Banalizámos esta forma de auto- e de hetero-representação como relações de vizinhança que se permitem conhecer, opinar e agir sobre vidas alheias porque… nos consideramos em posição de fazê-lo em vez de quem objectivamente reside nesse território. Coincidentemente, as nossas práticas discursivas relativas ao processo inverso, ou seja, de opinião ou intervenção no nosso território denotam considerável aversão e condenação a uma ilegitimidade absolutas.
5. Desta vez, e outra vez, é um país ocidental a decidir unilateralmente, perante indícios recolhidos pelo próprio sob formas pelas quais o próprio é responsável, a intervir militarmente – ou seja, a violar a integridade territorial de um estado soberano com um governo eleito em funções – como resposta a um outro acto cometido no âmbito de uma guerra civil. Sem mandato internacional – e mesmo com ele a reflexão continuaria a fazer sentido – para essa violação, sem autorização expressa do governo em funções, um país decide violar o território de outro, usando para esse fim armamento lançado à distância.
6. O mesmo país responsável pela escolha de processos de recolha de prova, pelo fornecimento desses elementos, e pela decisão unilateral de violar a integridade territorial de um país com um governo em funções chama-se Estados Unidos da América. É o mesmo país que a 19 de Março de 2003, mediante uma reserva de escolha de processos de recolha de prova mais tarde infirmada e uma decisão unilateral sem mandato internacional, violou a integridade territorial de um país com um governo em funções chamado Iraque.
7. Desde essa violação da integridade territorial de um país com um governo em funções chamado Iraque morreram dezenas de milhar de pessoas, a maior parte dos quais civis, em números que podem ser consultados nas fontes enunciadas no fim deste artigo. Repito, prova mais tarde infirmada.
8. Ontem, 7 de Abril de 2017, o país anteriormente responsável pela decisão unilateral de violar a integridade territorial de um país com um governo em funções baseado em prova posteriormente infirmada violou a integridade territorial de outro país com um governo em funções, baseado em prova por cuja recolha é o único responsável, sem qualquer mandato internacional para esse efeito.
9. Diversos outros países, a nenhum dos quais se conhece qualquer legitimidade para decidir unilateralmente da violação da integridade territorial de um país com um governo em funções, apoiaram a decisão.
10. Nenhum destes países, historicamente, considerou justificável a violação da sua integridade territorial enquanto país com um governo em funções.
11. A Carta das Nações Unidas, em vigor na ordem internacional desde 24 de Outubro de 1945, afirma pretender preservar gerações da guerra, a igualdade das nações, o respeito pelo direito internacional, obrigando-se a viver em paz e a garantir que a força armada não será usada, a não ser no interesse comum.
12. Aprendemos nada? Assistimos em silêncio?