Encontrava-me há algumas semanas a olhar para o Porto a partir do Jardim do Morro, em Gaia, experiência única que devo a uma amiga que me convidou a conhecer Gaia e a ver a cidade do Porto a partir da Serra do Pilar, quando, tendo-me apontado o Paço Episcopal, me vieram à memória os diversos livros que o escritor Arnaldo Gama (1828-1869) publicou no Século XIX sobre momentos específicos da história do Porto e das províncias do Norte e designadamente dois textos que envolviam bispos da cidade.
Retive “escritor”, mas este licenciado em Direito por Coimbra também aparece por vezes descrito como “advogado” e como “jornalista”. Era aliás comum, nos países europeus que algumas obras fossem inicialmente publicadas em revistas antes de virem a ser editadas como livros(i). O “colaborador literário” convertia-se não raro em redactor. Arnaldo Gama, filho de um advogado, não terá tido aliás muito tempo para se dedicar à advocacia no escritório do pai. Como jornalista foi redactor de vários jornais e fundou em 1867 o Jornal do Norte, de que foi proprietário(ii). Enquanto autor de romances históricos documentou-se sobre as épocas onde situava as suas tramas e inseria bem elaboradas Notas no final dos romances.
O Sargento-Mor de Vilar (episódios da invasão dos franceses em 1809), publicado em 1864, incide sobre acontecimentos do que ficou catalogado nos nossos livros escolares como segunda invasão francesa.
Na realidade a primeira invasão ficou posta em causa com o levantamento dos espanhóis que tinham ajudado na ocupação contra Napoleão, que tinha mandado prender o rei Carlos IV e o seu filho e sucessor Fernando VII e instalado no trono de Espanha o seu irmão José. No Porto o comandante espanhol mandou prender o governador militar francês general Quesnel e o poder passou a ser exercido por um organismo liderado por Dom António José de Castro, bispo do Porto e um dos governadores do Reino instituídos por Dom João VI aquando da sua retirada para o Brasil. Restabelecido após a vergonhosa Convenção de Sintra e a retirada das tropas de Junot uma aparência de governo nacional português com o apoio de tropas britânicas. No entanto as tropas francesas vão esmagando, província a província os insurgentes espanhóis e os ingleses seus apoiantes, na batalha da Corunha morre o general inglês Sir John Moore. Soult não tenta forçar a passagem do Rio Minho mas entra por Chaves.
Quem se lhe opõe? A organização militar que vigorou entre a Restauração e o liberalismo compreendia a) tropas de linha, que na altura estavam a ser reorganizadas – dado que Napoleão incorporara muitos dos seus efectivos na Legião Portuguesa e a encaminhou para França b) milícias c) ordenanças. As ordenanças das povoações rurais foram mobilizadas para combater os franceses, ou melhor “os hereges”. Nos coutos minhotos de Vilar e de Manhente o capitão – mor das respectivas ordenanças era o Reitor do convento de Vilar de Frades e o sargento – mor um proprietário rural que na sua juventude fugira ao ensino dos frades, fora combater para o exército e participara na campanha do Rossilhão(iii), chegando por via da tarimba a capitão. Esta gente, bem como as ordenanças de outros coutos, porta-se mal e Soult força os postos de Ruivães e Salamonde praticamente sem combate, em parte com medo dos cães que os franceses traziam consigo e que podiam “comer a gente”. Bernardim Freire de Andrade quer retirar para o Porto mas acaba, ele e outros oficiais, por ser assassinado por amotinados que o qualificam de jacobino e herege.
As tropas portuguesas batem-se bem no Carvalho do Este mas são derrotadas e Soult acaba, através de Santo Tirso, por marchar sobre o Porto, que consegue tomar e onde a fuga da população dá origem ao conhecido desastre da ponte das barcas. Dispersos, os efectivos portugueses que haviam estado envolvidos nos combates do Minho acabam por participar em retaliações contra alguns proprietários, designadamente fidalgos, tidos como jacobinos. Noutro livro(iv) Arnaldo Gama descreve logo no início uma emboscada a uma coluna francesa que tinha ido às Caldas de Vizela e é atacada no regresso. A operação, como será típico nas guerras de guerrilha na península ibérica na altura é comandada por um fidalgo, mas depois de derrotada a coluna e capturados alguns dos seus integrantes a liderança muda e os franceses capturados são atados a árvores e transformados em archotes vivos.
Os acontecimentos do Porto, em cuja defesa superintende o bispo, são narrados de vários ângulos, detalhando a disposição das baterias mas também a inépcia de muitos dos defensores, que por vezes fazem grandes descargas de fuzilaria contra forças inimigas que estão fora do alcance, e episódios de indisciplina que levam ao assassínio de oficiais portugueses que se encontravam detidos por suspeitas de jacobinismo.
Arnaldo Gama utiliza, entre outros, documentos que obteve particularmente, designadamente de amigos, e deve dizer-se que a História que reconstitui nas suas páginas tem mais peso que um ou outro episódio romanesco que surgem na obra. Note-se que os anos em que escreve são já de alguma acalmia em relação às lutas internas do liberalismo e em que os períodos de intensa oposição às ideias novas trazidas por este parecem estar ultrapassados.
A última dona de S. Nicolau (episódio da história do Porto no Século XV), publicado em 1864, passa-se no tempo de Dom Afonso V, mais precisamente em 1474, sendo bispo D. João de Azevedo. Do Porto diz Arnaldo Gama que era na altura “a primeira terra comercial portuguesa e uma das mais comerciais da Europa dessa época” e uma “cidade heroicamente ciosa, ciosa como nenhuma outra, dos seus fóros privilégios e liberdades”. Deixando de lado os aspectos romanescos, neste livro mais desenvolvidos, retive da sua leitura a) a organização autónoma da Judiaria, embora a comunidade judaica estivesse sujeita a restrições b) o funcionamento da bolsa do comércio do Porto, que funcionava como seguradora em certas situações e que teve de recusar a um mercador o indemnizá-lo pela perda dos seus navios Cadramoz e Fortepino, tomados no golfo de Biscaia por piratas andaluzes, recusa essa com base em a direcção da Bolsa ter desaconselhado a viagem c) o lançamento fora da cidade de Rui Pereira, senhor da Terra de Santa Maria, que ultrapassara os três dias de permanência no Porto consentidos pelos foros, privilégios e liberdades aos fidalgos alheios à cidade.
A verdadeira batalha que foi necessário ao povo mobilizado pela câmara para conseguir este resultado é descrita por Arnaldo Gama em numerosas páginas quase diria de sabor jornalístico em que um dos aspectos mais curiosos é a descrição da tentativa do bispo, que era amigo de Rui Pereira e se deslocara à casa em que este se alojava acompanhado por dois capelães, abandonando o lugar quando percebeu que o seu amigo ia resistir, sem mais curar das mulas em que tinham vindo. Com algum humor, o escritor dá conta:
Elas, as tristes, como estavam mais dianteiras e mais à mão, foram as primeiras vítimas daquele traiçoeiro atentado. Baquearam logo ao primeiro ímpeto da pancadaria. Era uma dor de coração ver como ficaram aqueles três bispais animaizinhos tão anafados de pêlo tão luzidio, assim repassados de virotes e machucados por aquela tormenta de pedregulho, como que o mui nobre senhor Rui Pereira tão lealmente correspondia à confiança com que os honrados burgueses do Porto haviam acolhido as promessas que pelo bispo lhe mandara fazer.
O Filho do Baldaia apesar de por lá aparecerem personagens de A Última Dona de S. Nicolau não é uma continuação deste último e não o tratarei desenvolvidamente aqui. Passa-se em França no tempo de Luís XI e Arnaldo Gama documenta-se suficientemente bem para produzir uma obra que suporta a comparação com Quentin Durward e Anne of Geierstein de Walter Scott(v).
Em rigor poderia ter começado estas notas com uma referência a Um Motim Há Cem Anos, publicado em 1861 que trata de um “levante” de comerciantes de vinhos do Porto que teve lugar em 1757 contra a instituição de uma Companhia Geral da Agricultura de Vinhos do Alto Douro apue seu filho tempo foi enviada uma alçada ao Porto que incriminou muitos dos participantes e propôs e fez executar numerosas condenações à morte. Arnaldo Gama que cria toda uma série de intrigas romanescas em torno dos personagens apresenta-nos os comprometidos no “levante” e de explica como vão sendo entregues aos executores. O romance deixa aliás entender que o Ministro terá sido iludido intencionalmente sobre a amplitude e a gravidade do movimento. O romance é precedido de uma Introdução cobrindo um diálogo sobre muitos aspectos da História da cidade do Porto entre o seu autor e um seu amigo, o “antiquário” Gonçalo Antunes que terá procurado contribuir para estabelecer a verdade histórica pela qual Arnaldo Gama se diz ter guiado.
Vale a pena referir ainda um livro que, sem ser um romance histórico, tem uma fortíssima componente de crítica social. Francisco Ribeiro um negociante do Porto é, por culpa alheia, atingido pela falência e consequente desprezo das suas relações que antes o adulavam, sendo que a sua saúde não sobrevive à crise. O seu filho Paulo dá-se dez anos para criar uma grande fortuna que lhe permita reembolsar os credores e esmaga-los por sua vez com o seu desprezo. Entre as actividades que lhe permitem enriquecer nesse prazo estão a de pirata e a de negreiro(vi). Voltando fabulosamente rico conclui que o que interessa à sociedade do Porto é a riqueza e não a moralidade da sua aquisição. Manda construir em Inglaterra um navio a que dá o nome de El-Rei Dinheiro. O texto parece ter sido concluído em vida do autor mas só foi publicado em 1876, isto é sete anos após a sua morte.
Arnaldo Gama que seu filho Augusto Gama diz ter sido muito apreciado na altura entre portugueses e brasileiros é hoje pouco conhecido:
- morreu jovem (41 anos) enquanto o seu amigo Camilo Castelo Branco, teve 40 anos de actividade literária;
- era um romântico, quando o romantismo começou a ser sucedido pelo realismo;
- não era reeditado pelas editoras, que lhe preferiam novas eleições de Alexandre Dumas, o que fez subir o preço dos exemplares sobrantes dos seus livros;
- foi poucas vezes reeditado – três edições de O Sargento Mor de Vilar, duas de A Última Dona de S. Nicolau, uma de O Segredo do Abade, duas ou três de O Balio de Leça(vii) – até à edição popular das suas obras ainda dinamizada por seu filho nos anos 1930;
- apesar de algumas reedições nos anos 1960, terá sido feito o esforço de editar “obras completas” apenas em 1973, com a Lello & Irmão.
- a seguir ao 25 de Abril registam-se algumas novas edições de livros de Arnaldo Gama, sendo as mais recentes de O Sargento-Mor de Vilar; seria interessante saber quantos exemplares se venderam de Paulo o Montanhês de que a INCM tirou 10 000 em 1981.
Arnaldo Gama(viii) merecia ser mais valorizado, designadamente no Norte cujas memórias tentou preservar.
Notas
(i) Paulo, o Montanhês, um dos primeiros trabalhos de Arnaldo Gama, foi inicialmente publicado em 1953 na Revista Península. Apesar de ter sido publicado mais tarde com alterações, inclusive de título, foi esta versão que veio a ser recuperada em 1981 pela Imprensa Nacional Casa da Moeda com um estudo de Maria Leonor Machado de Sousa.
(ii) Segundo “Esboço biográfico” escrito por seu filho Augusto Gama para uma reedição de O Balio de Leça, romance histórico publicado postumamente por empenha da família e localizado na idade Média.
(iii) Em que Portugal participou sem vantagem nenhuma, fazendo a Espanha uma paz separada.
(iv) O Segredo do Abade
(v) Publicados na Romano Torres respectivamente como O Cavaleiro da Escócia e A Donzela do Nevoeiro..
(vi) Para além de referências ocasionais a outras actividades exercidas, como a de contrabandista em Sonora. Hoje talvez se incluísse o tráfico de droga nas actividades imorais que propiciam um rápido enriquecimento.
(vii) Sigo nesta parte o “Esboço Biográfico” de Augusto Gama. A Biblioteca Nacional mostra no mesmo período outras reedições.