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Terça-feira, Dezembro 24, 2024

As cobaias do coronavírus

Urariano Mota, no Recife
Urariano Mota, no Recife
Escritor e colunista da Boitempo e do Direto da Redação. Colabora também com Vermelho, Carta Capital e Fórum.

Neste 11 de setembro de 2020 minha atenção vai para novos bárbaros

Neste 11 de setembro, sei que deveria falar do 11 de setembro de 1973, quando houve o golpe militar contra Salvador Allende. Deveria rever a imagem do presidente Allende resistindo de capacete em último recurso, com alguns fiéis militantes às portas do palácio La Moneda. Com a foto de Allende, falaria de um socialista democrata que pela força das urnas julgou ter o poder, e foi derrotado com a eloquência maior de bombas e crimes. Também poderia falar das imagens que correram o mundo nesse golpe, as fogueiras de livros destruídos por soldados do exército nas ruas do Chile.

Mas neste 11 de setembro de 2020 minha atenção vai para novos bárbaros. Começo pelo alerta contra as trevas, que o cientista Miguel Nicolelis esclareceu numa entrevista à BBC Brasil:

O negacionismo se propagou rapidamente nos Estados Unidos nos últimos anos, e como sempre nós importamos tudo aquilo que não presta para o Brasil. E agora está assustador porque tem um movimento contra uma vacina que nem existe ainda. Curiosamente, a gente ouviu nos últimos dias o inominável presidente alegar que vacinar é uma coisa espontânea, decisão pessoal se vacinar ou não, isso quando estamos no meio de uma pandemia que daqui a pouco vai matar um milhão de pessoas no mundo.

É assustador, e não se trata só do presidente falando isso, hoje tem até secretário de Saúde, não do governo federal, tem médico falando um absurdo desses”.

E, de fato, no mais recente 7 de setembro, tão à vontade a manada se acha em seus atos e pregação, que afirmaram esta máxima: “só a cloroquina salva”. (Depois da Bíblia como obra máxima da medicina, é claro). O desenvolvimento da antieducação do caos fascista no Brasil passou do limite do imaginável. É tamanho que pode até não merecer crédito. Falam até em “o lado obscuro das vacinas”, e plantam fake news do gênero “as vacinas, antes de serem injetadas nos pacientes, não são testadas”. Não informo o link no Face da sua escabrosidade para não lhes atrair mais propaganda. Mas acreditem, nada do que passo a contar a seguir é invenção ou fantasia doente de ficcionista. Preparem-se. Segurem o vômito da repulsa ao desconhecimento, porque chegam a divulgar isto com ar de seriedade:

“Vemos que há um pico em muitos países nos casos de corona, e isso ocorre porque mais pessoas estão fazendo teste” ( !!!!!!!!) Percebam o primor da lógica. Os antivacinas querem dizer que se há febre é porque um termômetro acusa o grau de calor num paciente. E se há câncer, a culpa é do médico que o diagnosticou. E se alguém chama de racista o espancamento e prisão de pessoas negras, a culpa é dos negros que acham de comprar em ambientes que não deviam. E se são mortos é porque entram na zona de tiro. Mais ainda: se a humanidade do Brasil ousa chamar o presidente de nazista, a culpa é de quem chama assim um indivíduo de atos e princípios democráticos.

“Vacinas causam reações!”, gritam.

Percebem o grau de fanatismo medieval? Depois que tornaram a Terra uma esfera retangular, ou uma “ex-fera” plana, agora avançam em hordas com a mais despudorada e agressiva ignorância que já houve na história. Escrevo ignorância, mas tenho que corrigir. A ignorância é uma fase do conhecimento. O ignorante não sabe ainda a sabedoria que há no mundo, desconhece a herança deixada pelos sábios e bravos. Mas não, estes novos bárbaros recuam o conhecimento sabido e universal para o reino do desconhecimento, antes que Deus fizesse a luz. Isso quer dizer, num grito: rasguem, queimem todos os livros e avanços científicos de todos os tempos! Nós não os queremos mais. Derrubem-se as leis científicas e todas as teorias e práticas desses depravados comunistas nas artes, na cultura e na ciência. Queremos caminhar sob a proteção de Deus dos séculos anteriores a Cristo. Ali, sim, teremos de volta o mundo plano, retilíneo, retinho e certinho na fase prévia aos Dez Mandamentos de Moisés.

O fato é que o “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”, da boca do presidente, se harmonizou como um estímulo nos grupos de antivacina. E um gado imenso, seguidor do líder no Planalto, espalha a desinformação.

É o que mostra uma recente análise da União Pró-Vacina, grupo formado por instituições ligadas à USP Ribeirão Preto que atua no combate à desinformação sobre vacinas.

O que parecia ser mais uma fala estúpida do presidente recebeu o reforço, no dia seguinte, de peças da Secretaria Especial de Comunicação da Presidência. Nos principais grupos antivacina do Facebook no Brasil, a repercussão foi instantânea. A análise da União Pró-Vacina mostrou que entre o dia 31 de agosto e as 23h59 do dia 2 de setembro 14 publicações já reverberavam a declaração e as peças de comunicação, totalizando 773 interações, sendo 426 reações, 264 comentários e 83 compartilhamentos.

Por fim, pelo adiantado da hora, ou melhor, pelo atraso da hora, peço desculpas no mesmo passo em que explico o cacófato do título destas linhas. Em “As Cobaias” acima o som é de Asco + Baias. Asco, de repugnância. Baia, de gado.


Texto em português do Brasil


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