Um dos claros sinais de quão disfuncionais e conturbados se apresentam os tempos actuais é, evidentemente, o aparecimento de propostas de política económica em claro desrespeito pela tradição e pelas mais arreigadas convenções liberais. Só assim parece explicável e entendível a referência a propostas como a da tributação de lucros inesperados, a da defesa do controlo dos preços ou a de racionar a distribuição de certos bens.
Primeiro a pandemia de Covid-19, depois a guerra na Ucrânia estão a desencadear debates económicos a que já não estávamos acostumados e já ouvimos as principais instituições internacionais a pedirem que os lucros excessivos dos produtores de energia sejam tributados, líderes políticos da Europa central começam a falar em racionamento de energia para o próximo Inverno e na necessidade de controle dos preços, perante o aumento da inflação. É verdade que circunstâncias excepcionais exigem medidas do mesmo calibre, mas não deixa de ser estranho ouvir comentadores e analistas (daqueles que, imbuídos na ortodoxia tradicional e na inabalável confiança nas virtudes dos mercados, nunca têm dúvidas e raramente se enganam) que há uma década defenderam e impuseram ferozmente a via do empobrecimento das populações do sul da Europa para resolver os problemas do endividamento, rasgarem agora as vestes e exigirem a tributação dos lucros extraordinários.
Hoje, os enormes lucros dos laboratórios farmacêuticos devido à pandemia, conseguidos em grande parte graças à investigação fortemente financiada por fundos públicos, bem como os dos produtores de energia (a americana Exxon Mobil duplicou o resultado líquido para 5,5 mil milhões de dólares, a BP anunciou um lucro de 6,2 mil milhões, o maior trimestral em mais de uma década, a Galp acompanhou a tendência e multiplicou por seis o resultado líquido nos primeiros três meses do ano, enquanto a Shell apresentou um lucro de 9,13 mil milhões de dólares) só podem ser vistos como lucros injustificados e vergonhosos, sobre os quais muitas organizações económicas internacionais, desde a Agência Internacional de Energia á OCDE, não hesitam em exigir uma tributação excepcional e até o FMI quer mais impostos sobre lucros excessivos e os super-ricos.
E nem se pense que semelhantes ideias são algo novo ou nunca aplicado, porque durante ou após as duas guerras mundiais do século XX vários foram os países que implementaram uma tributação de lucros inesperados ou, como então se justificou, lucros adquiridos vergonhosamente por infortúnio nacional.
Mas além da política fiscal e na linha do defendido por reconhecidos economistas – como Arthur Cecil Pigou e John Kenneth Galbraith, ou até por John Maynard Keynes –, existem outras vias de actuação para forçar a redistribuição dos lucros resultantes da forte subida de preços em consequência da guerra; entre estas vias conta-se o recurso a mecanismos de controlo de preços, solução que procura responder à maior das ineficiências do pensamento liberal, porque a redução dos preços alcançada por via do ajustamento (redução) da procura é demorada e fortemente penalizadora para as famílias de menores recursos
Outra forma extrema de substituir o mercado é mediante o recurso ao racionamento de produtos com stocks reduzidos ou de difícil ou demorada reposição. Historicamente, isso tem sido feito principalmente para bens energéticos e para produtos alimentares e de primeira necessidade, no que pode ser apresentado como um processo de partilha organizada de esforços para reduzir o consumo em situação de escassez de modo a evitar o que pode ser a natural vantagem dos mais ricos sobre os mais pobres. Esta é uma abordagem em clara contra corrente face ao dominante pensamento neoliberal, pois significa ficar do lado dos consumidores mais pobres para garantir uma distribuição de bens essenciais mais equitativa.
As três propostas – tributação de lucros excepcionais, controle de preços e racionamento – representam outras tantas políticas que visam redistribuir ao maior número possível de pessoas os benefícios decorrentes de situações económicas extraordinárias que normalmente apenas beneficiam uma ínfima minoria.
Isso mesmo poderá ter estado na origem da intenção anunciada em Março passado, quando a Comissão Europeia incentivou os governos a recuperar parte dos lucros obtidos pelas empresas de energia; desde então o governo francês decidiu controlar os preços da electricidade, enquanto o seu homólogo alemão ainda se questiona sobre os meios para reduzir o consumo de energia em caso de interrupção do abastecimento russo.
A sua eficácia prática (e até a sua aplicação) só poderão ser avaliadas mais tarde, depois dos governos europeus terem vencido as resistências que irão encontrar e a sua própria relutância (veja-se quão rapidamente passámos do anúncio, em princípios de Abril, de que o ministro da economia, Costa Silva, admite imposto sobre lucros inesperados das empresas, para a notícia, em meados de Maio, de que o governo não vai criar taxa sobre lucros extraordinários das empresas, porque acredita que o tecto ao preço do gás da proposta ibérica dispensa imposto extra a eléctricas) não os condicione a servirem os interesses instalados.