A recepção de ideias inovadoras em matéria de decisão sobre despesas públicas
Os apontamentos que fui publicando no Jornal Tornado sobre A Intendência-Geral do Orçamento – História de um organismo que nunca existiu (1929-1996) mostraram, espero, que o sistema político português, mesmo na sua versão salazarista, não rejeita necessariamente as ideias inovadoras, mas está dotado de grande capacidade para as neutralizar.
Estudar soluções que permitam seja observada a maior economia dentro da maior eficiência segundo a fórmula adoptada em 1929 deveria ser consensual e até popular.
No entanto a Intendência-Geral criada nunca foi instalada – nem extinta – e apesar de tentativas de atribuir o mesmo tipo de incumbências a outras estruturas, nada de significativo foi concretizado.
Uma leitura possível aponta para a falta de desejo de Salazar, que fora de algum modo forçado a publicar esta medida em 1929, de confiar a uma estrutura técnica a glória de introduzir aperfeiçoamentos nas Finanças Públicas e preparar decisões no domínio da despesa, uma vez que a sua “obra” neste domínio já fazia parte da sua lenda política.
No domínio especificamente orçamental contudo a Administração Pública portuguesa continuou a estar atenta a experiências de reforma orçamental estrangeiras, como as tentativas de aplicação generalizada na administração federal dos Estados Unidos do PPBS – Planning Programming Budgeting System – e de desenvolvimento na Europa de experiências aí inspiradas que nos chegaram directamente através da OCDE ou do Instituto Internacional de Ciências Administrativas cuja Secção Portuguesa era constituída na altura pelo Instituto Português de Ciências Administrativas, cujos estatutos tiveram reconhecimento oficial pelo Ministério da Educação Nacional em 1968, ano em que também foram reconhecidos os Estatutos da Associação Portuguesa de Produtividade Administrativa, que reunia quadros que vinham participando em várias experiências de Organização & Métodos nos vários Ministérios.
Na Direcção-Geral da Contabilidade Pública de Aureliano Felismino e no Secretariado Técnico da Presidência do Conselho de Ministros de Carlos Corrêa Gago não era desconhecida a noção de que a decisão sobre despesas públicas deveria ser tomada após a apreciação em sede técnica dos méritos dos “programas de trabalhos” apresentados, nem desconhecida a literatura que no estrangeiro vinha a ser publicada sobre análise custos – benefícios, análise custo – eficácia, análise multicritérios. Aliás Marcelo Caetano, uma vez Presidente do Conselho de Ministros, legislara no sentido de reforçar a capacidade técnica dos Ministérios neles criando Gabinetes de Planeamento, e de atribuir ao membro do governo que ficasse responsável pelo planeamento competências legais de Intendência – Geral do Orçamento no domínio dos Investimentos do Plano(i).
A disseminação do conhecimento sobre preparação e avaliação de projectos
É importante reconhecer que a capacidade de elaboração de projectos de investimento se disseminou pelo país, particularmente em conexão com os projectos que tiveram de ser sujeitos à apreciação de órgãos da Administração Pública portuguesa e mais tarde da Administração comunitária.
De assinalar que desde o início houve quadros portugueses que se familiarizaram com as metodologias de avaliação de projectos desenvolvidas pela OCDE e pelo Banco Mundial, que foram ensinadas em alguns cursos universitários desde os anos 1970.
Retenho as observações(ii) que na altura suscitou a apresentação de alguns dos projectos de investimento por parte das empresas nacionalizadas, e que foram no sentido de alertar que correspondiam a ideias acarinhadas pelas tecnoestruturas mas cuja viabilidade necessitava de ser testada na nova conjuntura, aliás desde muito cedo foi necessário recorrer ao FMI para evitar a ruptura cambial. Nestas condições o impacto cambial das despesas do sector público administrativo e empresarial passou a ser controlado e o impacto dos projectos de investimento empresarial sobre a situação económica e financeira das empresas proponentes passou a ser também analisado.
Quando os projectos de investimento da Administração Pública, estavam sujeitos a cabimento nas dotações inscritas nos Capítulos de “Investimentos do Plano” do Orçamento do Estado de cada ano e à prévia concessão de visto de autorização de despesas sob proposta do Departamento Central de Planeamento. Não se tratava no entanto de um procedimento de selecção de investimentos mas de uma verificação do mérito da programação apresentada para investimentos já seleccionados no âmbito dos Ministérios sectoriais, muito embora nos finais dos anos 1970 os serviços tentassem atribuir-lhes uma pontuação de acordo com critérios previamente definidos. Recordo entre estes a “contribuição para a política anti-inflacionista”!(iii) Suponho que se tratou de tentativa de aplicar uma filosofia de análise multicritérios.
Em geral, fomos sendo capazes de atribuir um nome a um programa ou a um projecto e de construir um cronograma de trabalhos e tarefas mas que este esforço de programação pública só muito raramente envolveu uma comparação de alternativas.
Julgo aliás que tal comparação só é ainda obrigatória por lei quando se preveja o recurso a Parcerias Público – Privadas.
Fora desse caso será facultativa cabendo fazer referência ao que escreveu o antigo primeiro ministro José Sócrates num artigo de opinião publicado no Expresso no início de 2020 com o título “O Novo Aeroporto de Lisboa decide-se em Paris” em que afirmou que a solução Montijo seria a única a não ter tido um prévio estudo de comparação com outras alternativas.
Golpe de Teatro no processo do Aeroporto?
Tive ocasião de em 11 de Março de 2020 escrever no Jornal Tornado um artigo com o título “A irreversibilidade (psicológica) do projecto do Aeroporto do Montijo” onde historiei o processo desde Marcelo Caetano e a decisão de então fazer o Novo Aeroporto em Rio Frio, saudei o processo participativo que levou à conclusão de que a solução “Alcochete” seria preferível à solução “Ota” e me permiti brincar um pouco com a suposta irreversibilidade da solução “Montijo”.
Não pude impedir-me de fazer notar que em vez de representar uma mais valia para a acessibilidade dos concelhos da sua área de implantação – ideia que explicou a popularidade da ideia da Ota-Aeroporto do Oeste – ou uma oportunidade para a realização de alguns negócios em fase de construção ou de exploração, ideia que terá ajudado a vendê-la nos concelhos da Lisboa South-Bay, a decisão de localizar um novo aeroporto na sua área de residência deveria até inspirar prevenções.
Depois disso, o Governo de António Costa lá decide anunciar que seleccionará prestadores de serviços para a realização de um estudo de impacto ambiental com várias alternativas de localização – Portela complementado por Montijo, Montijo complementado por Portela, Alcochete sem grande detalhe sobe as soluções de acessibilidade – omitindo o cenário aproveitamento da infraestrutura aeroportuária de Beja que muitos defendem – sem detalhar as soluções de acessibilidade correspondentes a cada alternativa.
Em 9 de Junho, obtida maioria absoluta, arrumado o Orçamento de 2022 e apurado o sucessor de Rui Rio na liderança do PS, o Público publica uma entrevista com a Ministra da Presidência, plenamente concertada com António Costa, em que é deferida ao PSD a escolha da localização do novo Aeroporto de Lisboa.
Mariana Vieira da Silva, num discurso que pode ser qualificado de “ronronante” reconhece todas as virtudes e mais algumas ao maior partido de oposição, cujo magro número de deputados, que permite reforçar a maioria de que o PS já dispõe, na expectativa de que este se manifeste disposto, tal como inicialmente a adoptar a solução “Montijo” que seria a de Pedro Passos Coelho e a esquecer o estudo de impacto ambiental com alternativas em vias de ser adjudicado. Pedro Nuno dos Santos ameaça começar a recusar aviões a partir de 2023, os outros coreógrafos que têm aparecido em cena misturam as falhas de disponibilidade do SEF com as limitações do aeroporto e o prestimoso Director do Público mostra-se disponível para fulminar o PSD se aquele não alinhar.
Da entrevista – ideia chave
Aquilo que é preciso para termos finalmente, tantos e tantos anos depois, um aeroporto que resolva os problemas é um acordo entre os dois maiores partidos. É isso que torna esse projecto sustentável no tempo (como qualquer aeroporto tem de ser). Por isso estamos disponíveis para aceitar aquela que for a solução com que o PSD está confortável. Esse é o maior sinal de disponibilidade para a negociação. Não é provocação nenhuma, é mesmo como tem sido. E nem assim tem sido possível que o PSD defenda a mesma solução que definiu no passado.
Da entrevista – sobre o estudo de impacto ambiental
O mais importante de tudo é haver um acordo sobre a solução. O resto são os procedimentos que têm que ser cumpridos. Sem um acordo sobre a solução arriscamos-mos a que todos os procedimentos se repitam ad eternum em função de uma decisão que não foi tomada. São áreas onde, para não repetirmos os erros do passado, temos de dialogar com o maior partido da oposição para procurar ultrapassar este andar para a frente e para trás em grandes investimentos que são fundamentais para o país.
Diria eu que o importante era que não haja problemas com a segurança do Aeroporto e que a sua construção não venha a ser contestada, nomeadamente em outros países a quem as maiorias do parlamento português não impressione.
Quanto às razões que levaram o PSD a sentir-se inicialmente confortável com a solução “Montijo”, talvez não seja conveniente aprofundá-las.
Notas
(i) Que só em Outubro de 1974 viriam a ser formalmente atribuídas ao entretanto denominado Secretariado Técnico do Planeamento, mais tarde redenominado Departamento Central de Planeamento.
(ii) Feitas designadamente no Departamento Central de Planeamento pelo Engenheiro Rui Mil Homens
(iii) Tanto quanto tenho presente, o Director de Serviços da altura, Engº João Mendes Espada, tinha feito nos Estados Unidos uma formação sobre PPBS.