Uma história curta e cruel: duas jovens irmãs, com pronunciadas dificuldades da fala, vinham frequentemente à consulta. Ninguém as acompanhava. Sempre me impressionou que ambas usavam carteira, carteiras de pele que teriam sido bonitas muitos anos antes.
Grândola, 1980
Uma história curta e cruel: duas jovens irmãs, com pronunciadas dificuldades da fala, vinham frequentemente à consulta. Ninguém as acompanhava. Sempre me impressionou que ambas usavam carteira, carteiras de pele que teriam sido bonitas muitos anos antes. As carteiras iam e vinham, vazias, penduradas no antebraço. As carteiras eram a representação da dignidade de ambas. Talvez tivessem sido da mãe, talvez as tivessem encontrado no lixo.
Não sabiam ler, não tinham ido à escola.
Queixas vagas e múltiplas fizeram-me pensar que vinham, de longe e a pé, apenas para me verem e serem atendidas, sentadas num sítio quente.
Lá me foram relatando, em consultas sucessivas, com muita cautela e evidente apreensão as míseras condições em que viviam.
Falecida a mãe, de quem nem se lembravam, mas de quem tinham uma fotografia. Viviam ambas como pai, alcoólico, taciturno e violento que, explicaram elas, todas as noites usava uma ou a outra, por vezes ambas.
A que falava com menos dificuldade disse-me:
_Eu sei que nós somos umas pobres coitadas com pouco tino. Mas isto não merecíamos. Somos tratadas como animais. Mas e se fugíssemos, quem nos acolheria?
Não tinham documentos, ou se os tinham o pai tê-los-ia escondidos.
Em casa a comida era pouca, elas cozinhavam para ambas e para aquele que era o carrasco.
A roupa no fio. Contaram que não tinham lençóis, esse tinham-se sujado e rasgado há muito, nas lutas e humilhações noturnas.
Naquela época, a legislação não estava escrita para ajudar mulheres vítimas de abuso sexual, nem vítimas de agressão pelos pais.
Falei de ambas ao colega e amigo que trabalhava comigo.
Tentei ajudar, o melhor que podia e sabia.
Disse-lhes que poderia ir com ambas ao gabinete do Delegado do Ministério Público e ajudaria a fazer a queixa.
Por estranho que pareça as duas jovens adultas, que teriam 20 ou 21 anos, recusaram veementemente.
E disseram-me que esperavam que o pai não durasse muito, já tinha cirrose, tossia continuamente. Quando a morte o levasse para o inferno elas poderiam arranjar o tugúrio em que viviam e talvez aí sim, pedir ajuda para melhorarem de vida.
Fiquei com medo. Fiquei com medo que lhes passasse pela ideia matarem o pai num momento de loucura.
Mas vi-as tão franzinas, tão frágeis, que quis acreditar que isso não aconteceria.
Quando saí de Grândola e pedi transferência para o norte do país, não conseguia esquecer ambas. Por vezes ao andar na rua via duas silhuetas magrinhas, com duas carteiras penduradas dignamente do braço e vinham-me lágrimas aos olhos.
Havia uma peculiaridade que me enternecia: ambas tinham nomes muito invulgares e bonitos, ambos começados pela letra D.
Isso levava-me a imaginar que teriam sido amadas e desejadas pela mãe. E fazia-me sentir menos triste.
Quem olha de relance para as outras pessoas, raramente adivinha, o que pode estar por detrás de uma ruga, de um pequeno sorriso humilde, de um encolher de ombros desistido.
Ainda hoje sinto grande afeição por velhas carteiras antigas. Onde as encontro, por vezes em feiras de velharias, abro-as sempre.
É um gesto obsessivo. Um gesto de culpa. Gostava de encontrar a fotografia das duas jovens que deixei, petrificadas, no passado.
Ilustração: Duas Irmãs, de Beatriz Lamas Oliveira
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90