Não passou tanto tempo como isso
No final da legislatura correspondente ao primeiro governo de António Costa tive ocasião de escrever no Jornal Tornado um conjunto de artigos sobre movimentos grevistas em Portugal: “Novos tipos de greve, novos tipos de grevistas” (21 de Novembro de 2018), “Organizações, Carreiras e Profissões” (27 de Março de 2019), “Costa e a sua greve”, (28 de Agosto de 2019), “As greves ‘de direita’” (11 de Setembro de 2019).
Mantenho no essencial as observações que fui fazendo na altura:
- enquanto de modo geral o sindicalismo vertical foi perdendo peso, o sindicalismo horizontal, de base profissional, de certa forma representativo de uma classe média assalariada com menor tradição sindical, foi despertando esperanças, sobretudo quando surgiu em ligação com propostas de formas de luta mais imaginativas e “económicas”, no sentido de terem, do ponto de vista dos assalariados uma relação mais favorável entre o impacto e os custos, isto é, tratando-se do recurso à greve, a perturbação da actividade e os descontos salariais;
- no caso muito discutido dos Enfermeiros foi na Ordem, como sucedeu com outras profissões que se discutiu a relação entre categorias e títulos profissionais como forma de organizar carreiras, no entanto para efeitos de organização dos processos de mobilização foi tentado, a princípio, que um dos sindicatos existentes, aliás filiado na UGT os assumisse, e acabaram por ser criados outros sindicatos(i);
- de modo geral, não havendo unicidade sindical(ii), nada obsta a que numa mesma actividade profissional comecem a surgir depois de sindicatos democráticos, sindicatos independentes, sindicatos de chefias, etc.;
- do ponto de vista patronal não há qualquer interesse em encorajar a existência de sindicatos combativos mas na medida em que a presença destes é mais sentida na Administração Pública tem sido ao Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da Republica que tem incumbido funcionar como célula anti-greve pronunciando-se sobre a legalidade das greves, como as “greves cirúrgicas” dos enfermeiros e greves alegadamente “self-service” dos registos; no entanto o pedido de extinção do Sindicato Nacional dos Motoristas de Matérias Perigosas por vícios de constituição (ter participado na sua constituição um indivíduo não abrangido pelo Sindicato), veio a ser suscitado pelo Ministério Público, mostrando que o princípio da legalidade e o princípio da oportunidade se podem conjugar(iii)
- António Costa parece ter-se entusiasmado nos combates anti-sindicatos em que se envolveu, como o dos transportes de matérias perigosas – embora a construção de uma ligação entre o aeroporto de Lisboa e Aveiras de Cima, na altura anunciada esteja ainda na fase de intenções – e sobretudo com o desfazer da “coligação negativa” na Assembleia da República que apontava para recuperar o tempo de serviço dos professores do básico e secundário.
A incapacidade de dar a volta no plano das relações laborais
Os processos de luta que foram envolvendo o SEAL – Sindicato dos Estivadores e Actividade Logistica, designação que o sindicato de Lisboa tem vindo a adoptar, mereceram alguma publicidade na parte em que, ainda no tempo da Ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, envolveram um acordo relativo ao Porto de Lisboa, que implicaria a desactivação de uma nova empresa criada pelos operadores portuários, e sobretudo, a regularização das situações contratuais dos estivadores do Porto de Setúbal que deram muito brado. O SEAL lançou-se posteriormente à tentativa de organização no sindicato de estivadores de outros portos.
As entidades patronais entenderam-se então para assestar no sindicato um golpe de que não se sabe se virá a levantar-se. Tecnicamente a entidade patronal do Porto de Lisboa revestia-se da forma jurídica de Associação de, salvo erro, sete operadores portuários, sendo com esta que a generalidade dos estivadores do porto mantinha os seus contratos. Ora a Associação veio a declarar insolvência o que não só colocou em causa os empregos da comunidade de trabalhadores, como, segundo o Sindicato, se serviu desse expediente para não regularizar dívidas a estes.
É claro que uma insolvência pode dar lugar a acordos, mas os patrões visavam mais longe. Aproveitando estar em causa uma Associação e não uma sociedade, desvincularam-se todos desta, tornando impossível a sua subsistência.
O que fez o Ministro de tutela, agora já não o do Mar, mas, após as eleições de 2019, o das Infraestruturas, Pedro Nuno Soares, paradigma dos socialistas de esquerda, e candidato à sucessão de António Costa, perante este golpe patronal? À Justiça o que é da Justiça…
É certo que historicamente os Governos do Partido Socialista odiavam o Sindicato apesar de Ana Paula Vitorino e António Mariano, Presidente do SEAL, terem chegado a alcançar um raro momento de empatia. Mas eliminar uma das partes no diálogo laboral é algo que deveria ser contrariado por qualquer Governo.
Em relação às relações laborais na Administração Pública pensou-se que posteriormente às eleições de 2019 haveria mudanças uma vez que, já então, surgira um problema novo – a dificuldade de recrutamento de pessoal – a que no Jornal Tornado várias vezes os artigos de Eugénio Rosa têm aludido, e do qual foi sintoma a impossibilidade de aproveitar um número suficiente de candidatos para preencher as vagas de um concurso geral aberto para técnicos superiores.
Colocava-se aqui obviamente a necessidade de uma revalorização salarial dos técnicos superiores. A autonomização da função Administração Pública e a promoção de Alexandra Leitão, antiga Secretária de Estado do Ministério da Educação, a Ministra da Administração Pública, deixavam entrever que poderiam vir a ser tomadas outras medidas.
Em geral, já desde este período que se assiste em alguns serviços ou empresas a reivindicações – e até a greves – centradas na contratação de mais pessoal sem qualquer reivindicação de ajustamentos remuneratórios.
O segundo governo de António Costa e o período dos entendimentos à esquerda chegou prematuramente ao fim, ao que se percebeu pela recusa de reverter as conquistas patronais no domínio do Código do Trabalho alcançadas na concertação social no tempo da troika com a colaboração da UGT / João Proença, e por hesitações no domínio da política a adoptar para reforçar o Serviço Nacional de Saúde que implicaria implicava actuar sobre a fixação dos médicos neste.
A formação de uma maioria absoluta não alterou aqui os dados do problema nem permite iludir opções.
Um processo inflacionista sem controlo
No terceiro governo de António Costa em que, ao contrário do que se esperava, a pasta da Administração Pública ficou dependente da Ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva,
- o Governo procurou que cada Ministério pré – acordasse com os sindicatos da sua área como que um “protocolo negocial” que delimitasse as questões a serem objecto de conversação ou de negociação colectiva durante a legislatura de maioria absoluta(iv);
- o impacto da subida de preços em termos de poder de compra dos salários foi ignorado através do expediente de considerar a inflação de 2021 como critério de actualização dos salários de 2022 e assim por diante, e de se considerar que a subida de salários teria o efeito de alimentar a inflação, razão pela qual tanto o Estado como as empresas públicas ficariam fortemente condicionados em termos de acréscimo da massa salarial.
Não é para admirar que nalgumas destas negociações ou pedidos de negociação outros pontos com implicações pecuniárias, que não a revisão de salários anuais – considerada esgotada – saltem para cima da mesa e que o recurso à greve seja logo encarado.
Vejamos três casos
Transportes ferroviários
As greves na CP começaram quando a administração, por acto de gestão, definiu um aumento de remunerações que esgotou o tecto do aumento de massa salarial consentido pelo Governo.
Como resultado disto têm-se sucedido na CP um conjunto de greves que mereceram do colunista do Público, João Miguel Tavares, em 2 de Março de 2023, um artigo com o título “O comboio de sindicatos que paralisa a CP” segundo a qual na CP actuariam pelo menos 17 Sindicatos, cujos nomes transcreve. Não é contudo a multiplicidade de sindicatos que dá força às greves, aliás em parte têm actuado agrupados, mas a circunstância de entre eles se contar desta vez o SMAQ – Sindicato dos Maquinistas que, por si só ou em conjugação com os controladores de tráfego ferroviário da IP, tem a circulação ferroviária à sua mercê. O SMAQ(v) aliás está a escalonar as greves de forma a maximizar o impacto sem que se possa falar de greve self-service.
Professores
Os movimentos de professores têm sido dos aparentemente mais escrutinados pela comunicação social(vi). A negociação que gerou aqui conflito e transbordou não era directamente salarial. O Governo afectou estar enfim preocupado com os professores que eram obrigados a “andar com a casa às costas” quase incutindo nos espíritos a ideia de que era possível fixar todos os professores no seu lugar de residência original. A generalidade dos sindicatos teria no entanto à partida a percepção de que o Ministério da Educação favoreceria uma municipalização da gestão de professores obstaculizada pela existência de um estatuto único e de uma lista graduada nacional.
Entretanto dois sindicatos estavam já a ensaiar o recurso à greve, o STOP que a generalidade da comunicação social insistia em tratar como Sindicato de Todos os Professores, só o Público tendo correctamente detectado que tinha mudado de denominação e de âmbito para abranger os funcionários não docentes das escolas, e o SIPE, Sindicato Independente dos Professores e Educadores. Pelo que se foi vendo escrito, o STOP terá emitido pré-avisos de greve por tempo indeterminado que os destinatários poderiam cumprir ou não, sendo que se as escolas não chegassem a abrir porque os funcionários não docentes responsáveis pela abertura estivessem em greve, só estes últimos teriam descontos no vencimento. Pelo que se foi vendo igualmente escrito, grupos de professores (o STOP negou qualquer esforço de dinamização neste sentido) recolheram fundos para compensar os funcionários não docentes dos descontos incorridos por estes(vii). O SIPE optou por um esquema diferente(viii). Entretanto tudo veio a acelerar quando o STOP conseguiu uma inesperada participação numa manifestação e apontou para a realização de novas manifestações em Lisboa, evocando as grandes manifestações de 2008, inclusive a que Paulo Guinote recordou num livro sobre A Grande Marcha dos Professores.
A aceleração teve impacto no processo negocial onde acabou por ser colocada em cima da mesa pelos sindicatos a recuperação do tempo de serviço e em que a FENPROF e outros sindicatos, incluindo o SIPE, concretizaram um conjunto de greves distritais com concentrações. A FNE – Federação Nacional da Educação acabou por integrar o grupo. Atentas as ligações de há muito tempo com o PSD (a FNE foi dinamizada por participantes das Comissões Sócio-Profissionais que depois se encontraram em força nos TSD-Trabalhadores Social Democratas) o Presidente do PSD, Luís Montenegro, tem apoiado a realização de negociações sobre a recuperação do tempo de serviço. O relacionamento entre o STOP e o grupo de sindicatos parece ter-se norteado pela preocupação de valorizar a acção de cada um e de não interferir.
Aliás o parecer do Conselho Consultivo da PGR sobre as greves de professores não pôde apontar ilegalidades aos pré-avisos de greve, tendo-se agarrado a instruções do STOP sobre a sua execução, mas como é evidente, o Ministério da Educação não se meteu a marcar faltas injustificadas. A surpresa acabou por vir dos Tribunais Arbitrais constituídos junto do Conselho Económico e Social que parece terem adoptado a ideia que o equilíbrio entre o direito á greve e as necessidades de educação exigiam um número mínimo de aulas, e daí descontarem o tempo teoricamente já ocupado pelos pré-avisos de greve do STOP, sujeitando os do grupo de Sindicatos a serviços mínimos. Em artigo anterior já me referi a situações em que órgãos de jurisdição de sindicatos ou de partidos, não sujeitos à supervisão do Conselho Superior da Magistratura decidem sem olhar para os normativos aplicáveis. Temos agora o caso dos tribunais arbitrais do CES. Também aqui o STOP e o grupo de sindicatos estão a reagir com prudência, sem se agredirem mutuamente, e ajustando rapidamente os planos de actuação.
Funcionários judiciais
Têm aparecido ultimamente na comunicação social notícias de uma greve do sindicato dos funcionários judiciais que se tem traduzido, nos termos definidos em pré-aviso de greve, na preterição de certas diligências e na inexecução de certas tarefas por parte dos funcionários que comparecem ao serviço. Não confundir, previnem-nos, com a greve do sindicato dos oficiais de justiça, que é cumprida da parte da tarde, com desconto no vencimento. Motivações salariais, que há muito pessoal a acumular funções para conseguir sobreviver.
Sob pressão dos serviços os governantes do Ministério da Justiça pediram o parecer da ordem ao Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, que se pronuncia pela ilegalidade de greve do sindicato dos funcionários judiciais, com as inerentes consequências. Só que o sindicato e os trabalhadores concluíram que não seria possível colocar processos disciplinares a cada um dos milhares de grevistas e decidiram ir para a frente. Uma das Direcções Gerais optou por descontar um dia inteiro ou meio dia inteiro de vencimento nos casos em que falharam diligências, mas o TAC competente terá aceite uma intimação para protecção de liberdades direitos e garantias.
Não me admiraria que se tire uma ou outra conclusão sobre a ilegalidade das greves, permitida pelo Código de Trabalho de Bagão Felix e de Luís Pais Antunes, e mantida pelos governos posteriores, responsabilizando o sindicato por prejuízos causados. Basta uma sociedade de advogados lembrar-se disso e os sindicatos cairão na insolvência.
Costa entre os sindicalistas
A comunicação social anuncia que António Costa acaba de participar no V Congresso da Tendência Sindical Socialista, que é comum à CGTP e à UGT e exortou os militantes a lutar pelo aumento de salários nas empresas e a promover a acção unida dos sindicatos.
Será para levar a sério?.
Notas
(i) Em rigor, não me parece que a Ordem dos Enfermeiros tenha praticado algum acto que esteja reservado às associações sindicais e que possa vir a ser, nessa base, anulado. Num plano totalmente diferente está a investigação sobre despesas de dirigentes que venha a dar lugar a condenações por crime de peculato. Quanto aos fundos obtidos por crowdfunding de apoio à greve cirúrgica não foram recolhidos ou geridos pela Ordem. Mas tudo o que foi propalado na altura mostrou até que ponto é possível ir com vista a mobilizar a opinião pública contra um movimento grevista.
(ii) Participei na manifestação de 14 de Janeiro de 1975, até ao Ministério do Trabalho, pela unicidade sindical na lei.
(iii) Decretada em primeira instância, e confirmada pela Relação de Lisboa em finais de 2022. Já está entretanto criado um Simmper – Sindicato Independente dos Motoristas de Matérias Perigosas com sede em Aveiras de Cima.
(iv) Aparentemente isto não foi feito em todos os Ministérios ou naqueles em que foi feito não resultou numa formalização rígida.
(v) O SMAQ é um dos poucos sindicatos com fundo de greve, que não sei se estará já a ser utilizado.
(vi) Pessoalmente, tenho dúvidas sobre se não seria de criar um estatuto de carreira docente de raiz ou se a dificuldade de conseguir professores em certas áreas não justificaria uma diferenciação salarial. Por exemplo praticamente desde o início que se optou por criar uma carreira de técnico superior de informática mais valorizada que a carreira de técnico superior generalista.
(vii) A presença no STOP de funcionários não docentes não se caracteriza contudo por uma subordinação aos interesses dos professores, uma vez que este sindicato passou a revindicar uma actualização salarial idêntica em valor absoluto para todos, à semelhança aliás do que vem sendo concedido por algumas entidades patronais, por exemplo a CARRIS, como forma de mitigar o impacto da inflação.
(viii) Baseado na realização de greve a um tempo definido do horário lectivo de cada dia.