Temos vindo a assistir a sucessivas denuncias de problemas ocorridos com os serviços públicos de saúde e, muito recentemente, a atos de violência contra profissionais de saúde que são a face destes serviços.
Não estando em causa a veracidade destas denuncias, com frequência são utilizadas para legitimar soluções anti Serviço Nacional de Saúde (SNS), apresentam-se populisticamente assentando na desinformação com soluções imediatas e sempre contra a integridade do serviço público. Não procuram as causas das ocorrências já que estas conduziriam às soluções tecnicamente corretas ao normal desempenho do SNS. Sendo os recursos humanos e os recursos financeiros fundamentais, as infraestruturas e os equipamentos são igualmente importantes e indispensáveis.
A prestação de cuidados de saúde deve fazer-se em instalações funcionais, seguras e confortáveis, proporcionando boas condições de trabalho aos profissionais e ambiente acolhedor aos doentes, contribuindo para a imagem de dignidade e respeito dos cidadãos pelos serviços públicos de saúde. Os equipamentos médicos constituem a ferramenta sobre a qual assenta a atividade clínica, cujo sucesso depende da operacionalidade e atualização tecnológica daqueles.
Garantir o adequado desempenho das infraestruturas e dos equipamentos de saúde exige, por um lado, investimento financeiro permanente garantindo:
- A remodelação e substituição de infraestruturas e
- A substituição e atualização tecnológica de equipamentos em fim de vida útil e amortizados e, por outro lado,
- A manutenção permanente garantindo a respetiva operacionalidade.
A remodelação e substituição de infraestruturas de saúde. O que foi e o que é a construção hospitalar em Portugal?
A construção hospitalar em Portugal começou em 1492 com a construção do Hospital Real de Todos os Santos, mandado construir pelo Rei D. João II, em substituição de 43 hospícios e albergarias característicos da época. O seu sucessor, o Rei D. Manuel I, determinou a construção dos Hospitais de Évora, Coimbra e Braga. Esta política de concentração dos pequenos hospitais e centralização da assistência hospitalar, marca a viragem da história e o início da construção hospitalar em Portugal. A arquitetura destes hospitais não só em Portugal, mas em toda a Europa, estava condicionada pelas práticas terapêuticas assentes em magias, receitas de mezinhas, sangrias, purgas e atos cirúrgicos, privilegiando a participação dos doentes nos atos religiosos em detrimento dos atos médicos.
Só no século XIX, com as descobertas na área da microbiologia, a construção hospitalar evoluiu e passou a ter em conta o volume atribuído a cada leito, a ventilação e a iluminação dos espaços e foram construídos inúmeros hospitais pelas Misericórdias. Com o Estado Novo, em 1946, a Lei 2011 de 2 de abril, criou a Comissão de Construções Hospitalares (CCH), estabeleceu uma hierarquia hospitalar e elaborou um plano de construção de dezenas de hospitais concelhios e alguns hospitais distritais, integrando os dois hospitais escolares em construção, o Hospital de Santa Maria, inaugurado em 1954, e o Hospital de São João, inaugurado em 1959.
Em 25 de Abril de 1974 os serviços de saúde eram compostos pelos Hospitais das Misericórdias, sendo 25 distritais e o central de Santo António no Porto e 256 concelhios, pelos cerca de 1600 postos dos Serviços Medico Sociais das Caixas de Previdência, pelos Hospitais Públicos Centrais de Lisboa, Porto e Coimbra e alguns especializados e pelos Centros de Saúde criados no âmbito da reforma Gonçalves Ferreira em 1971. A oficialização dos hospitais Misericórdias em 1974, a publicação da Lei do Serviço Nacional de Saúde (SNS) em 1979 e a integração em 1984 dos Serviços Medico Sociais e de muitos hospitais concelhios nos Centros de Saúde, estes definidos agora como 2ª geração, fica definida a estrutura do Serviço Nacional de Saúde integrando todos os serviços públicos prestadores de cuidados de saúde.
O plano de construção hospitalar da CCH e posteriormente da Direcção Geral de Construções Hospitalares (DGCH), esta criada na reforma de 1971, manteve-se depois do 25 de Abril e foram construídos 18 hospitais em regime público entre 1959 e 1992, com mais de 7.000 camas, na média de 212 camas /ano. Depois de 22 anos de atividade, a DGCH é extinta em 1993 e criada a Direção-Geral das Instalações e Equipamentos de Saúde (DGIES). A modalidade de construção em regime público acabou e no regime da chamada “chave na mão”, com adjudicação da concepção e da construção, foram construídas 4.400 camas em 13 novos hospitais até 2006, na média de 338 camas/ano. A DGIES foi extinta, dos cerca de 130 engenheiros e arquitetos existentes naquela data hoje restam 40 dispersos pelas Administrações Regionais de Saúde (ARS) e pela Administração Central dos Serviços de Saúde (ACSS), a construção e gestão hospitalar foram privatizadas através do regime de parceria público-privada (PPP), incluindo projeto, financiamento, construção e exploração clínica. O País perdeu a capacidade e o saber acumulados durante quase 60 anos em planeamento, programação e projeto de construção hospitalar.
Foram construídos em regime de PPP de 1ª geração, que inclui a gestão clínica, entre 2010 e 2013, os hospitais de Cascais, Braga, Loures, e Vila Franca de Xira, num total de 1680 camas. Entretanto é sucessivamente anunciada e sucessivamente adiada a construção dos hospitais do Seixal, de Sintra, de Évora e Oriental de Lisboa. A realidade é que desde 1995 o SNS perdeu cerca de 4.000 camas de rede hospitalar de agudos e a hospitalização privada, em aceleração desde de 2005, cresceu cerca de 2.000 camas detendo no total cerca de 10.000 camas e uma enorme e lucrativa rede para prestação de cuidados de saúde em regime ambulatório, destacando-se os meios complementares de diagnostico e terapêutica.
O quadro descrito demonstra que a politica de liberalização da saúde passou pela destruição sistemática dos recursos públicos, estratégia iniciada há cerca de 20 anos com o nascimento das PPP e pela ainda actual estagnação da construção hospitalar pública, favorecendo objetivamente a atividade privada. Esperava-se que na legislatura anterior este ciclo fosse encerrado e dado inicio a um plano necessário de renovação e modernização das infraestruturas do SNS. Em vez disso, assistimos a um conjunto de promessas sucessivamente incumpridas e que o Orçamento de Estado (OE) para 2020 perpetua para esta legislatura.
Os 102 M€ previstos para 2020 e os 950 M€ eventualmente para a legislatura, são fictícios e não exequíveis, pois não correspondem a um plano coerente e ajustado ás necessidades. Onde está previsto o Hospital do Oeste, para substituição de três unidades com idade média de 50 anos, sem funcionalidade adequada, de complexa gestão clínica, que potencia baixa qualidade e elevada ineficiência? Onde está prevista a Maternidade de Coimbra para substituição da Maternidade Daniel Matos e da Maternidade Bissaya Barreto, com 109 e 56 anos de idade respetivamente? Onde está prevista a reestruturação do Hospital de Santa Maria com estudos e programas elaborados e sucessivamente apresentada? E o Hospital Oriental em regime de PPP de 2ª geração vai mesmo ser adjudicado em 2020 ou, apesar das decisões tomadas, por incapacidade do Ministério da Saúde vai continuar adiado? Estes projetos de modernização das infraestruturas hospitalares, depois de concluídos, terão um impacto positivo nos custos operacionais anuais de 103 M€. Este plano é exequível com o investimento de 77 M€ em 2020 e 865 M€ na legislatura, com valores inferiores aos previstos não agrava o OE 2020, constitui a ultima oportunidade para Partido Socialista mostrar o seu apoio efetivo ao SNS.
A teia de restrições á substituição e atualização tecnológica dos equipamentos de saúde
A consulta dos Relatórios e Contas do Ministério da Saúde e do Serviço Nacional de Saúde permite-nos concluir que, apesar da crónica suborçamentação do SNS e do baixo investimento global da ordem dos 5% relativamente aos custos operacionais, depois de 2011 e com o memorando de entendimento, a redução do investimento na saúde começou pela diminuição das amortizações e dos investimentos sobre as amortizações e, já em 2014 e no período pós-“troika”, sobre esta degradação do investimento público na saúde, por despachos do Secretário de Estado da Saúde, foi imposta a necessidade de autorização da tutela da Saúde e/ou das Finanças para os investimentos em equipamentos e em instalações do SNS.
Passaram, então, a ser autorizados apenas cerca de 50% dos pedidos dos hospitais e o respetivo valor ficou em cerca de 1% da despesa total de exploração. Esta sucessão de restrições ao investimento teve e tem ainda como consequência que os processos, que obrigatoriamente circulam pelo Ministério das Finanças, na decorrência da obsessão da dívida e do défice, ficam sujeitos ao respetivo “veto de gaveta”, contribuindo para a destruição do SNS. Podemos afirmar que o investimento efectivo durante os últimos oito anos foi irrelevante e muito inferior ao consumo de capital fixo nesta área. Era expetável que o OE para 2020 invertesse este percurso, definindo valores de investimento da ordem dos 2,5% dos custos operacionais e regras processuais que permitam a efetividade dos investimentos. O valor do SNS para os nossos Governantes, apesar das declarações públicas em sua defesa, não foi suficiente para a adopção desta medida.
A manutenção, despesa ou investimento?
As instalações e os equipamentos de saúde devem ter um desempenho caracterizado por uma elevada fiabilidade, isto é, reduzidas taxas de falha e por grande disponibilidade operacional e custos controlados. Estes objetivos só podem ser atingidos através de um serviço de manutenção, dotado de recursos humanos qualificados, dotado de recursos informáticos potentes e integrados com as aplicações informáticas de gestão financeira, compras e recursos humanos, dotado de recursos financeiros, dotado de organização e de modelos de manutenção adequadas aqueles objectivos e ao contexto socioeconómico existente no país ou na região.
A evolução ocorrida nesta área e nos quarenta anos de vida do SNS, não foi suficiente para atingir aqueles objetivos porque a organização e gestão dos recursos humanos, materiais e financeiros dos serviços de manutenção, não se enquadra numa estratégia e num projeto resultante da experiência coletiva, em discussão e articulação facilitada pela Tutela. As opções seguidas não podem ter por base a ausência de recursos ou razões ideológicas, mas sim uma avaliação dos ativos a manter, do custo dos recursos a alocar e dos custos diretos e indiretos de não produção. Sabemos que uma politica equilibrada na utilização de recursos próprios e contratados pode traduzir-se num índice de produção de 35€ de custo de manutenção global por cada 1.000€ de serviços de saúde produzidos.
A eficiente e eficaz gestão da manutenção dos ativos da saúde, passa pela existência de equipas de engenharia experientes e qualificadas, motivadas por carreira e salários adequados e exercício em serviços devidamente estruturados, organizados e apoiados. Mas o sucesso só ficara garantido com a monitorização e o apoio ao seu desempenho pelo Ministério da Saúde.
Os recursos do Ministério da Saúde
O exposto acima sobre a extinção da DGIES e a actual incapacidade do Ministério da Saúde, torna evidente que uma politica de reposição das funções e capacidades da administração publica é indispensável para sustentar a defesa do SNS com a reestruturação da rede hospitalar, o investimento em equipamento médico e o desenvolvimento da actividade de manutenção.
Dotar o Ministério da Saúde de capacidade de planeamento, programação e projeto de instalações e de equipamentos de saúde, de monitorização e apoio da manutenção, bem como o estabelecimento de normas e procedimentos em engenharia de saúde, só é possível e necessário recriando um Serviço de Instalações e Equipamentos ou desenvolvendo a Unidade de Instalações e Equipamentos da ACSS com a contratação externa de engenheiros e arquitetos hospitalares. Apesar da criticidade desta medida para o desenvolvimento de uma politica efetiva relativamente ás infraestruturas e aos equipamentos de saúde, o OE para 2020 nada apresenta.
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90
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