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João de Sousa

Domingo, Dezembro 22, 2024

As involuções da Argentina de Macri

Com o governo de Mauricio Macri, a Argentina passou por uma dupla involução. Por um lado, a transição de uma democracia capitalista limitada para um regime semi-autoritário, uma “democradura”. Macrismo é um híbrido que, em diferentes proporções, dependendo do caso, combina certas características de uma ditadura com as formalidades de uma democracia puramente eleitoral.Por outro lado, uma segunda transição de um estado soberano para um semicolonial, pronto a obedecer aos mandatos emanados de Washington, alinhando-se incondicionalmente com a política externa dos Estados Unidos e, recentemente, estabelecendo um aberrante co-governo entre a Casa Rosada e o FMI.

Em relação à primeira involução, os gestos e as decisões políticas adotadas pela Casa Rosada foram de uma eloquência exemplar. Basta, no entanto, notar a alegação autocrática para designar, por um decreto de necessidade e urgência (DNU) do Poder Executivo dois juízes do Supremo Tribunal ou a aplicação de uma terapia de choque brutal para “sincerar” a economia da Argentina. “Sincerar” é um eufemismo cunhado pela direita para ocultar a tunga do “tarifaço”[1], a queda dos salários reais, o aumento do desemprego, a disparada da inflação, o rápido crescimento da pobreza, a transferência escandalosa de renda realizada ao longo destes quase três anos – como resultado da eliminação de impostos retidos na fonte (imposto de exportação) do agronegócio, mineração e hidrocarbonetos -, o fenomenal endividamento externo e a criação de condições para facilitar a exorbitante fuga de capitais – que era a verdadeira contrapartida da dívida.

Na arena política, há um enfraquecimento do impulso democrático quando decisões transcendentais são tomadas sem qualquer debate público e de acordo com critérios supostamente técnicos. Um governo que ganhou com uma margem exígua de 51,4% dos votos atua como se sua legitimidade de origem se apoiasse sobre um mandato popular conferido por 70% ou mais dos eleitores, sem reparar que se sobrepõe a um país dividido em dois e que a busca do diálogo e do consenso, tantas vezes apregoada pelos notáveis do Cambiemos[2] durante a campanha eleitoral de 2015, foi velozmente arquivada uma vez que Mauricio Macri chegou à Casa Rosada.

O caso dos exorbitantes aumentos nos preços dos serviços essenciais como a água, a eletricidade, o gás e o transporte, concretizados sem as necessárias audiências públicas prévias que são exigidas pela legislação argentina, ilustra com eloquência o que vimos dizendo. Por outro lado, a própria composição do governo, com presença significativa de presidentes de grandes transnacionais, lança luz sobre o caráter oligárquico do governo, o que é ratificado não só pela origem social dos supostos representantes da vontade popular, elevados às alturas do aparato estatal, mas fundamentalmente pelas políticas que promovem que, pelo menos até agora, beneficiaram apenas as classes dominantes e as grandes corporações e prejudicaram o resto da sociedade.

A involução autoritária se confirma também quando se nota a asfixiante uniformidade comunicacional (salvo poucas exceções) que sofre a Argentina desde que Macri revogou parcialmente a Ley de Medios – golpe de mão presidencial que foi lamentavelmente convalidado depois pela Câmara de Deputados – cujo objetivo era a democratização da esfera pública.

Por isso episódios tão graves como os que revelaram os Panamá Papers ou os “contribuintes truchos” (roubo de nomes de pessoas que depois foram colocadas em uma lista de contribuições ilegais para a campanha do partido no poder) e que comprometem a figura presidencial e seus principais colaboradores, foram meticulosamente blindados ante os olhos da população por um sistema de mídia cuja missão não é mais informar, mas sim manipular ou confundir a opinião pública.

Vivemos um lamentável retrocesso que empobrece a consciência dos cidadãos e devora a vitalidade da democracia, porque esta adquire uma existência meramente espectral quando o que prevalece na mídia é uma sufocante oligarquia.

O resultado do ajuste selvagem feito pelo co-governo Macri-FMI é uma crise econômica fenomenal, macro desvalorização do peso, taxas de juros da ordem de 70% ao ano, inflação projetada de 45% e um índice de desaprovação social de 62% da população. Tudo isso com uma dívida de 153 bilhões de dólares usada para a especulação financeira e a fuga de divisas. Nem um hospital, nem uma escola, nem uma nova empresa pública, nem uma universidade foram criadas com o dinheiro desse endividamento.

A segunda involução é aquela que ocorreu quando, somada a anterior, o governo também abandonou qualquer pretensão de autonomia em matéria de política externa fazendo sua a agenda, as prioridades (e os conflitos!) dos Estados Unidos.

A Argentina já tentou provar as virtudes da submissão neocolonial nos desastrosos anos noventa, durante a presidência de Carlos S. Menem.

Sem receber nada em troca, quaisquer benefícios especiais como uma recompensa pela subserviência oficial, um preço terrível foi pago por tal subserviência: 106 pessoas foram mortas em dois ataques contra a Embaixada de Israel e da AMIA, em retaliação à participação argentina na Primeira Guerra do Golfo. Por que a história deveria ser diferente dessa vez?

A ofensiva feroz contra uma única política latino-americanista – a única sensata em um sistema internacional marcado por ameaçadoras turbulências – expressa no abandono pelo macrismo de projetos como UNASUL e CELAC nada de bom prenuncia para o tão alardeado como enigmático “retorno ao mundo” da Argentina. Na verdade, uma inserção proveitosa que só será possível a partir de uma posição de autonomia – é claro que sempre relativa – que preserve os interesses nacionais e não a partir de uma condição de submisso peão em um perigoso tabuleiro mundial cujas fichas o imperador move a seu gosto, e somente atendendo a seus próprios interesses e não aos interesses de seus servis vassalos. Donald Trump precisa da Argentina para fustigar a Venezuela e encontra no governo de Macri um fiel executor de suas ordens.

Em menos de um ano haverá eleições na Argentina. A direitização do clima ideológico internacional joga contra a restauração democrática e a reorientação da política nacional. O Partido Comunista da Argentina promove a unidade do campo popular para derrotar o holocausto social que executa o macrismo. Se for feito progresso na unidade, organização e conscientização do grupo heterogêneo de forças oposicionistas, se for elaborado a tempo um programa de salvação nacional baseado no Projeto de Plataforma Programática que nosso partido elaborou para enfrentar a crise e se adotamos uma adequada estratégia de campanha – levando em consideração, como ensina o triunfo de Bolsonaro no Brasil, o tremendo papel desempenhado hoje pelas redes sociais, os “big data”, as “fake news” e toda a artilharia da “Cambridge Analytica” – as possibilidades de derrotar o macrismo não são poucas. Lênin nos ensinou que o impossível pode se tornar real. Será uma tarefa árdua, mas inescapável. Especialmente porque é muito necessário, e não só para a Argentina.

[1] No primeiro semestre de 2018 o governo Macri promoveu reajustes nas tarifas (os “tarifaços”), que alcançaram até 30% de aumento nos transportes, gás, água, eletricidade, pedágios, medicamentos e telefonia.

[2] Nome da formação política do presidente da Argentina, Maurício Macri.

 

Intervenção no 20º Encontro Internacional de Partidos Comunistas e Operários, realizado em Atenas, Grécia, de 23 a 25 de Novembro.

Por Atilio Borón, Doutor em Ciência Política pela Harvard University, professor titular de Filosofia Política da Universidade de Buenos Aires e membro do Comitê Central do Partido Comunista da Argentina  |  Texto em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado

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