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Sexta-feira, Novembro 1, 2024

“As leis contra o racismo”, por José Carlos Ruy

José Carlos Ruy, em São Paulo
José Carlos Ruy, em São Paulo
Jornalista e escritor.

O racismo se manifestou com força, e de forma explícita, desde 2003, após a adoção das políticas de cotas raciais, principalmente no ensino superior.

Leia a seguir o ensaio “As leis contra o racismo”, nono capítulo do livro “Há Racismo no Brasil”, do escritor e jornalista José Carlos Ruy (1950-2021). Nos marcos da celebração do Mês da Consciência Negra, o Vermelho divulga a obra póstuma de Ruy, que é inédita. Será publicado um capítulo do livro por dia entre 20 e 30 de novembro. Confira.

Cap 9 – As leis contra o racismo

Embora muita coisa tenha mudado nas décadas seguintes ao fim da ditadura militar de 1964, o racismo persiste e mesmo a aplicação da lei que o pune é limitada pela existência dele. Além disso, foram décadas marcadas pelo desemprego, precarização das relações trabalhistas e limitação dos direitos sociais, uma situação agravada pelas políticas de ajuste econômico neoliberal dos governos de Fernando Collor de Mello (1990-1992), Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e dos ultraliberais Michel Temer (que usurpou o governo em 2016 e o dirigiu até 1º de janeiro de 2019), o direitista Jair Bolsonaro, o sucessor de Temer. Esse período teve o breve intervalo dos governos de Luís Inácio Lula da Silva (2003  2010) e Dilma Rousseff (2011 a 2016).

O impacto destes ajustes conservadores nas condições de vida e renda da população foi negativo, e pior ainda para negros e mestiços, que formam em torno de metade da população brasileira e estão jogados, em sua imensa maioria, nas camadas mais pobres e desprotegidas.

A luta contra o racismo ganhou uma dimensão institucional, nos governos Lula e Dilma, amparada por uma legislação avançada e o fortalecimento da luta antirracista.

O primeiro instrumento jurídico para punir o preconceito racial foi a Lei Afonso Arinos (1951), que o classificou como contravenção penal. Branda e inócua, aquela lei praticamente não teve aplicação. Foi somente com a Constituição de 1988 que a punição ao crime de racismo passou a ser mais efetiva. O artigo 5º da Constituição o declara “crime inafiançável e imprescritível”; esta disposição constitucional foi regulamentada pela Lei 7716/1989, que pune esses crimes com penas de um a cinco anos de prisão. Foi alterada mais tarde pela Lei 9459/1997, que classificou como crimes a discriminação e o preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, e ampliou o combate a eles. Agravou também o crime de injúria e incluiu nele as referências depreciativas a raça, cor, etnia, religião ou origem. E determinou penas de prisão para todos estes crimes.

Além de adotar leis classificando o racismo como crime, outras providências legais foram adotadas no âmbito da Constituição de 1988, como a criação de regras institucionais de apoio aos negros e mestiços, que aumentaram desde 2003.

Em 21 de março de 2003 foi criada a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), com status de ministério. No mesmo ano foi adotada a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, e criado o Conselho Nacional de Políticas de Igualdade Racial. O decreto 4887 (de 20/11/2003) regulamentou os direitos das comunidades negras remanescentes de quilombos. A lei nº 10.639, de 2003, tornou obrigatório o ensino da História da África e da cultura afro-brasileira nas escolas. Na seqüência, em 27 de maio de 2004 foi criado o Fórum Intergovernamental de Promoção da Igualdade Racial (FIPIR), envolvendo a União, estados e municípios onde existissem órgãos executivos (secretarias, coordenadorias, assessorias, etc.) para coordenar políticas contra o racismo e pela igualdade racial. Nos dias 30 de junho a 2 de julho de 2005 ocorreu em Brasília um encontro importante, promovido pela SEPPIR – a 1a. Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial. E em 20 de Julho de 2010 foi promulgada a lei nº 12288 que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial, um documento de enorme importância que representa, ele próprio, a confissão, pelo Estado, da existência do racismo no Brasil e da necessidade urgente de combatê-lo. Na mesma linha, em 2011, a Lei nº 12.519 instituiu o “Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra”.

“Racialização”: quem divide os brasileiros?

A oposição ao Estatuto da Igualdade Racial despertou, em setores conservadores, o temor da “racialização” da sociedade e do Estado brasileiros. Estes setores conservadores não reconhecem a existência objetiva desta divisão herdada do passado escravista, e que relega negros e mestiços às piores situações, como mostram repetidamente as estatísticas e os estudos de escritores antirracistas. “Racialização” enraizada na formação histórica da sociedade brasileira e na presença dessa herança escravista, que se mantém mesmo no século XXI.

Mas não adianta atribuir toda a conta do racismo brasileiro ao passado escravista, adverte a historiadora Wlamyra Albuquerque. “Atribuir ao escravismo a perversa desigualdade, a pobreza e a baixa auto-estima da população negra é uma forma de isentar o Estado republicano de suas responsabilidades não só com esta população, mas também com um projeto nacional igualitário e realmente democrático. É evidente que herdamos muito do passado escravista, mas sabemos que o tempo todo nós reeditamos essa herança. Não estamos lidando apenas com resquícios de um tempo que pretendemos superar, mas com projetos racistas contemporâneos, em processo de estruturação e legitimação social”, diz a historiadora (cit. in Comin: 2012).

A divisão social, cuja linha de demarcação é simultaneamente de classe e raça, foi flagrada mais uma vez por dois estudos publicados pelo Ipea em 2008, que mostram uma pequena melhoria na situação de negros e mestiços: “Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas: 120 anos após a abolição” e “As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição”.

A melhoria geral nas condições de vida da população, principalmente desde a redemocratização de 1985, foi acentuada na década de 2000.

A adoção do Estatuto da Igualdade Racial, em 2010, foi um passo importante, no ordenamento jurídico e institucional, na luta contra o racismo e suas mazelas, e consolidou a legislação antirracista. Logo em seu 1º artigo, o Estatuto da Igualdade Racial declara-se “destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica”. E define, no parágrafo único deste 1º artigo, como “discriminação racial ou étnico-racial: toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada”. Considera desigualdade racial “toda situação injustificada de diferenciação de acesso e fruição de bens, serviços e oportunidades, nas esferas pública e privada, em virtude de raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica”. Define como “desigualdade de gênero e raça: assimetria existente no âmbito da sociedade que acentua a distância social entre mulheres negras e os demais segmentos sociais”. Reconhece como população negra o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pelo IBGE. Indica como “políticas públicas: as ações, iniciativas e programas adotados pelo Estado no cumprimento de suas atribuições institucionais”. E define como ações afirmativas “os programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades”. O estatuto determina ser “dever do Estado e da sociedade” garantir direitos iguais para todos. Declara que sua “diretriz político-jurídica” é a “inclusão das vítimas de desigualdade étnico-racial, a valorização da igualdade étnica e o fortalecimento da identidade nacional brasileira”. E, para a implantação dessas determinações legais, anunciou a criação do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir) e criou a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, com os objetivos de promover a “saúde integral da população negra”, combater a “discriminação nas instituições e serviços do SUS”, fomentar a “realização de estudos e pesquisas sobre racismo e saúde da população negra”; incluir o “conteúdo da saúde da população negra nos processos de formação e educação permanente dos trabalhadores da saúde” e nos “processos de formação política das lideranças de movimentos sociais para o exercício da participação e controle social no SUS”. O Estatuto reafirma a obrigatoriedade, no ensino fundamental e médio, do “estudo da história geral da África e da história da população negra no Brasil”, como manda a lei nº 9394, de 20/12/1996. Determina a adoção, pelo poder público, de “programas de ação afirmativa”, como “políticas de promoção da igualdade e de educação”. Determina a “preservação dos documentos e dos sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos”, tombados de acordo com a Constituição. Determina a “proteção da capoeira, em todas as suas modalidades, como bem de natureza imaterial e de formação da identidade cultural brasileira”, e a reconhece como “desporto de criação nacional”. Dizendo ser “inviolável a liberdade de consciência e de crença”, assegura o livre exercício dos cultos religiosos de matriz africana e garante “a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Determina que aos “remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”, com apoio ao desenvolvimento dessas comunidades, “respeitando as tradições de proteção ambiental das comunidades”. Assegura o “direito à moradia adequada da população negra que vive em favelas, cortiços, áreas urbanas subutilizadas, degradadas ou em processo de degradação, a fim de reintegrá-las à dinâmica urbana e promover melhorias no ambiente e na qualidade de vida”. Prevê a “implementação de políticas voltadas para a inclusão da população negra no mercado de trabalho” pelo poder público, “inclusive mediante a implementação de medidas visando à promoção da igualdade nas contratações do setor público e o incentivo à adoção de medidas similares nas empresas e organizações privadas” (ver, no anexo, a íntegra do Estatuto).

A promulgação do Estatuto foi criticada pelos detratores das políticas afirmativas contra a desigualdade racial como ameaça de “racialização” do Brasil. Repetindo velhos argumentos racistas, aqueles detratores se esquecem que a divisão entre brasileiros de pele clara e pele escura é uma herança da escravidão e uma marca dela que sobrevive e precisa ser ultrapassada para soldar e eliminar o fosso social que há em nosso país.

O jornal “O Estado de S. Paulo”, por exemplo, publicou um editorial com um título significativo: “Poderia ter sido pior” (18 6 2010). Os críticos do Estatuto da Igualdade Racial o acusaram de dividir “racialmente” a sociedade brasileira, da mesma maneira como argumentavam, no passado, que a luta de classes seria “exótica” e estranha à sociedade brasileira. Acusam o Estatuto de promover a “racialização” do país e criar um “Estado racializado”.

A divisão baseada na cor da pele existe, mas não pelas razões que os conservadores alegam ao se referir à adoção de medidas contra o racismo. Ela decorre do passado escravista e da maneira como a Abolição foi feita no Brasil, controlada “pelo alto”, pela própria classe dominante de senhores de terras e escravos que detinha o poder sob o escravismo. A divisão entre os brasileiros é uma realidade objetiva, concreta, e seu reconhecimento é fundamental para corrigir esta fratura histórica e social, e consolidar a democracia. O argumento da racialização é uma falácia que não resiste sequer a um exame superficial. Na verdade, o que os setores conservadores e aqueles que partilham sua opinião temem não é a criação artificial de divisões entre os brasileiros. Temem o reconhecimento institucional da existência do racismo como a herança histórica da formação do Brasil que persiste em nossos dias e penaliza a parcela dos brasileiros que descende dos africanos escravizados que, têm na pele a marca dessa descendência. E constituem o setor mais oprimido da população.

As cotas raciais

Nos últimos anos, políticas de ação afirmativa – que incluem cotas para negros, pardos e indígenas nas universidades – vêm transformando a composição racial nas universidades. As reações a essa transformação indicam como o racismo influencia atitudes e repercute nas relações pessoais. “Somos todos formados a partir de uma lógica na qual a cor/raça importa, mas esta importância é naturalizada. O lento mas importante crescimento de ganhos em termos educacionais, políticos e econômicos da população negra deixa evidente o quanto ser branco, negro, mulato ou retinto faz diferença em diversas situações que vivemos cotidianamente”, destaca a historiadora Wlamyra Albuquerque, professora da UFBA e autora do livro “O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil”.

O racismo se manifestou com força, e de forma explícita, desde 2003, após a adoção das políticas de cotas raciais, principalmente no ensino superior.

A discussão sobre cotas é antiga; já em 1968 técnicos do Ministério do Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho propuseram uma lei que obrigasse as empresas privadas a contratar entre 10% a 20% de trabalhadores negros, com o objetivo de combater a discriminação racial no mercado de trabalho. A lei não foi aprovada, e o assunto só voltou à pauta em 1983, quando o deputado federal Abdias Nascimento, um militante antirracista histórico, propôs um projeto de lei de ação compensatória para os negros, com cotas de 20% no serviço público, bolsas de estudo, incentivos às empresas para a eliminação da discriminação racial, entre outras medidas. Novamente o projeto não foi aprovado.

A questão das cotas provocou um forte debate que ultrapassou os limites do movimento negro e envolveu amplos setores da sociedade, principalmente aqueles com acesso à universidade pública.

A primeira instituição a criar um sistema de cotas raciais foi a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em 2003. No mesmo ano o sistema foi estendido para as demais universidades públicas do Rio de Janeiro.

A Universidade Estadual da Bahia também adotou o sistema de cotas em 2003. Outra instituição acadêmica pioneira foi a Universidade de Brasília que, em 2004, estabeleceu um plano de metas para integração racial e étnica.

A Seppir informou, em 2015, que desde 2013, cerca de 150 mil estudantes negros tiveram acesso à universidade através das cotas. E avaliou positivamente os resultados que apresentaram. O debate se generalizou e passou a envolver a criação de cotas em empresas e órgãos públicos; desde fevereiro de 2003 a prefeitura de Piracicaba (SP) havia adotado cotas de 20% para negros em concursos públicos municipais.

A consequência foi uma gritaria generalizada contra o sistema de cotas, que representa um verdadeiro rombo no muro “racializado” que restringe aos brasileiros de pele escura o acesso ao ensino superior. Abriu a negros e mestiços espaços que antes eram dificultados e negados a eles, relegados ao lugar sancionado pela classe dominante e pelos costumes.

A criação das cotas raciais foi um passo importante, representado pela Lei nº 12.711/2012, que as tornou obrigatórias no ensino superior, e foi reafirmada pela Lei nº 12.990/2014, que criou cotas nos concursos públicos.

A resistência conservadora contra as cotas chegou a tentar judicializar a questão. Em 2008, o DEM (partido de direita, herdeiro direto da Arena, o partido dos generais de 1964, e do PFL, que a sucedeu) apresentou ao Supremo Tribunal Federal (STF) a ADIN (Ação Direta de Inconstitucionalidade) nº 186 para questionar a legitimidade das leis que criavam cotas no ensino superior.

Em 2012 em editorial, a “Folha de S. Paulo” batia na mesma tecla. Sob o título “Cotas raciais, um erro” (FSP, 27/04/2012), aquele editorial repetiu o mesmo argumento racista defendido pelo DEM na ADIN contra a adoção de cotas raciais pela Universidade de Brasília. O editorial repetiu a mesma alegação ultrapassada, segundo a qual o sistema de cotas impõe um “modelo de Estado racializado”, com o risco de “dividirmos o Brasil racialmente”. E a hipocrisia racista era a mesma: rejeitava as políticas compensatórias a favor dos negros alegando que as políticas compensatórias afrontariam o princípio constitucional de igualdade de todos perante a lei. Por isso acreditava que o STF deveria rejeitá-la, mas isso não ocorreu: a ADIN foi derrotada por 10 votos a zero, numa decisão democrática que honra aquela corte suprema. Baseavam sua argumentação alegando também a intensa miscigenação que houve no Brasil, processo que teria diluído as diferenças étnicas nas diferenças sociais, que separam os mais pobres dos mais afortunados.


Texto em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado

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